Escritora, crítica literária, travesti e ativista do movimento das trabalhadoras, Amara Moira é a autora do primeiro romance escrito em bajubá, o dialeto falado pelas travestis de rua no Brasil. Também conhecido como pajubá, o dialeto nasceu entre os anos 1960 e 1970, em plena ditadura militar, nas zonas de prostituição das grandes cidades. Era uma forma de proteção e resistência, mas também uma reação à segregação imposta ao grupo das trans e travestis, sempre afetado pela violência. Inacessível aos clientes e policiais, o bajubá (“segredo”, em iorubá) permitia uma comunicação exclusiva entre as profissionais do sexo, criando entre elas um cordão de confiança e solidariedade.
O romance Neca (Companhia das Letras) conta a saga do menino Simon rumo à idade adulta, quando se assume travesti, com o nome de Simona. Do “parquinho de diversões da escola” até a arriscada profissão de puta nas quebradas urbanas, o que Amara Moira expõe aos leitores “é a constituição de uma sexualidade dissidente, dominante e absolutamente lasciva”, escreve a crítica e professora de literatura Eliane Robert Moraes, em um ensaio sobre o livro na edição deste mês da piauí.
Moira nasceu em Campinas e tem 40 anos. Em 2011, ingressou no mestrado em teoria e história literária, defendido na Unicamp, com o trabalho “Dubliners”/”Dublinenses”: retraduzir James Joyce. Em 2014, depois de efetivar a sua transição, ela estreou na carreira de trabalhadora sexual de rua. Dois anos depois, publicou E se eu fosse puta (Hoo Editora), livro autobiográfico, em que fala de sua iniciação sexual. Em 2018, obteve o título de doutora, também pela Unicamp, com a tese A indeterminação de sentidos no “Ulysses” de James Joyce.
O escritor irlandês não é sua única influência em Neca. Moira costuma dizer que seu livro é uma mistura de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, com Os 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade. Do primeiro, diz ter copiado a estrutura, optando pelo monólogo em tom confessional que organiza o depoimento da narradora, Simona. O livro de Sade lhe serviu de modelo por certificar que “os lados mais sombrios da imaginação podem resultar nas nossas melhores contribuições à literatura”.
“Custa acreditar que tanta coisa possa caber nas moderadas 120 páginas do livro de Moira, mas é o que ocorre”, escreve Moraes. “O excesso tem seus segredos e, no domínio da forma literária, o comedimento surpreende por se revelar um de seus recursos narrativos. Neca não foge à regra e reitera tal economia de meios ao optar pelo monólogo, que limita a fala a uma só personagem. Quem detém a palavra é a própria Simona, travesti com altas quilometragens em esquinas brasileiras e europeias, cujo relato serve de preparo a uma jovem que acaba de ingressar no métier.”
Magnetizada pelas lições da tutora, a iniciante, que atende pelo nome de Amara, nada mais faz do que ouvir sua história de vida, na qual se reconhecem elementos autobiográficos da própria autora. “Alheia aos certificados de verdade que tanto empobrecem a chamada autoficção, a literata travesti bagunça à vontade as referências – e são justamente artimanhas como esta que nos garantem a qualidade de sua escrita”, observa Moraes.
Assinantes da revista podem ler a íntegra do ensaio neste link.