No dia 9 de março de 2023, a Polícia Federal deflagrou a Operação Desmonte. Uma centena de policiais foi às ruas em diferentes estados para prender e intimar suspeitos de participação numa quadrilha de tráfico de armas e drogas. As autoridades divulgaram, na época, que entre os alvos da operação estavam dois fugitivos de um presídio na Paraíba. Não mencionaram, entretanto, que havia também um agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na lista de investigados. A informação consta nos documentos do processo, que corre no Tribunal de Justiça da Paraíba.

Vagner Keith de Freitas, policial rodoviário federal de 46 anos, foi indiciado pela Polícia Federal e denunciado pelo Ministério Público da Paraíba sob acusação de praticar comércio ilegal de armas de fogo, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Em junho de 2023, a Justiça aceitou a denúncia contra ele e outros 28 réus acusados de participação no esquema.

Os investigadores da PF afirmam que Freitas comprava armas no Paraguai para revendê-las ilegalmente no Brasil. Seu principal comprador era um armeiro chamado Sérgio Pacheco, que foi preso na Operação Desmonte por suspeita de fornecer armas a uma facção paraibana chamada Nova Okaida (também conhecida como Tropa do Vaqueirinho). O próprio Freitas recebeu de pessoas ligadas à facção ao menos 90 mil reais, segundo dados bancários obtidos na investigação.

Rastreando a localização do celular de Freitas e mensagens por ele enviadas, a PF demonstrou que o policial viajava com frequência ao Paraguai, comunicando-se sempre com Pacheco, seu parceiro de negócios. Os dois demonstravam preocupação com o eventual vazamento das conversas. “Nada via WhatsApp, caralho”, diz Pacheco, entre as muitas mensagens obtidas pela polícia. “Vamos deixar de usar WhatsApp”, ele repete, recomendando, em seguida, que a conversa migre para o Telegram, aplicativo que ele considerava ser mais seguro.

Segundo a polícia, Freitas comprava as armas principalmente em duas lojas: a Pesca & Cia e a Caza y Pesca Rossi. Esta última tem como um de seus proprietários Bruno José da Costa Amaral, que em 2024 foi condenado no Paraguai por fabricação ilegal e tráfico de armas. Os carregamentos trazidos pelo policial variavam de pistolas Glock a fuzis Colt AR. Segundo a PF, ele cobrava valores superfaturados um indício de que a arma seria posteriormente vendida no mercado paralelo, onde os compradores se dispõem a pagar valores mais altos. Uma pistola Glock modelo G4, por exemplo, tinha um valor de mercado de 11 mil reais na época, mas Freitas a vendia por 17 mil, segundo a investigação.

Pacheco, seu comprador, é um especialista nesse mercado. De acordo com a PF, ele é conhecido como um tipo de despachante, que ajuda donos de armas a fazerem o registro legal delas no Brasil, cuidando de toda a papelada burocrática. Além disso, ele importava armamentos e itens correlatos, a maioria deles vindos de Orlando, nos Estados Unidos. A atividade aparentemente se justificava porque sua mulher, Jusilane Barili, era proprietária de um clube de tiros em Carapicuíba, na Grande São Paulo. A investigação aponta algumas inconsistências na prestação de contas da empresa, mas não afirma se ela servia ao esquema criminoso. Hoje, o CNPJ continua ativo, mas Barili não aparece mais como proprietária.

Ao quebrar o sigilo bancário do casal, a polícia constatou que os dois tiveram um rendimento incompatível com suas rendas declaradas. Pacheco movimentou mais de 16 milhões de reais entre 2018 e 2022, dinheiro que, segundo a PF, se explica em parte pelos pagamentos recebidos de integrantes de grupos criminosos. Barili, por sua vez, movimentou 6,5 milhões de reais no mesmo período. Ele foi denunciado sob acusação de cometer os crimes de associação para o tráfico de drogas, organização criminosa, comércio ilegal de armas de fogo e lavagem de dinheiro; ela foi acusada de praticar apenas lavagem de dinheiro.

Freitas, o policial, também movimentou uma fortuna, segundo a PF. Entre 2018 e 2021, passaram pela sua conta bancária 10,7 milhões de reais, cerca de treze vezes o salário acumulado que ele recebeu da PRF nesses quatro anos. Sua mulher, Lígia Mariano Bachitchi, embora não tenha emprego formal, movimentou mais de 3 milhões de reais entre 2018 e 2023. A PF afirma que ela administrava as contas usadas para pagar fornecedores paraguaios, receber pagamentos de armas e disfarçar a origem do dinheiro. A lista de acusações na denúncia contra Bachitchi inclui comércio ilegal de armas e lavagem de dinheiro, já que, segundo a investigação, emprestou de forma consciente suas contas aos “negócios escusos do marido”.

Devido aos fatos revelados na investigação, a Corregedoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal abriu, em dezembro de 2023, um processo administrativo disciplinar (PAD) contra Vagner Freitas. Não há previsão de conclusão. Enquanto isso, o policial segue trabalhando normalmente. Ele progrediu na carreira em janeiro deste ano, com um aumento salarial de 2,6% por ter tido desempenho satisfatório ao longo de 2024. A avaliação da PRF é orientada por critérios de “produtividade, com base em parâmetros e metas previamente estabelecidos; conhecimento de métodos e técnicas necessários ao desenvolvimento das atividades inerentes ao cargo; e cumprimento das normas de procedimentos e de conduta no desempenho das atribuições do cargo”.

Em nota, a PRF afirmou que o processo disciplinar é sigiloso e que, portanto, não podem ser divulgadas informações a seu respeito. Disse também que a abertura do PAD não impede a progressão na carreira dos servidores públicos, e que o policial permanece em atividade porque não houve até agora uma ordem judicial determinando seu afastamento.

Há indícios de que outros policiais participavam do esquema. Segundo a investigação, Adriano Frasson, que também é agente da Polícia Rodoviária Federal, transferiu 310 mil reais para Vagner Freitas entre 2020 e 2023. “Apesar de serem colegas de trabalho e possuírem relação íntima de amizade, não foi possível identificar justificativa para a realização de transferências dos valores”, diz o relatório da PF.

O policial federal Afif Elias André Neto também fez repasses a Freitas e à mulher dele, mas em valores menores. Foram 118 mil reais ao todo, segundo a PF, mas o período de tempo em que o dinheiro foi transferido não consta nos documentos da investigação. Neto, além disso, movimentou 25,4 milhões de reais em sua conta bancária entre 2018 e 2023, valor que, segundo a investigação, é “incompatível com seus rendimentos de servidor público federal oficialmente declarados”.

Frasson e Neto não foram indiciados pela PF e não respondem à Justiça. Um relatório policial de maio de 2023, contudo, afirma que, “haja vista os indicativos de irregularidades em suas condutas”, as informações colhidas sobre os dois policiais seriam compartilhadas “tão logo possível” com as corregedorias das polícias e com o Ministério Público Federal, para que fossem tomadas as medidas cabíveis. Procurada pela piauí, a PRF confirmou que Frasson está sendo submetido a um processo administrativo disciplinar. A PF disse não poder comentar o caso, e o MPF disse que não localizou, em seu sistema, investigações contra os dois policiais, embora elas possam estar ocorrendo sob sigilo.

“As pessoas têm que ter o direito de se defender, mas há situações que são muito sérias. O policial [Vagner Freitas] precisa ser afastado, e ações disciplinares precisam ser tomadas de forma mais rápida”, diz Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) que há anos pesquisa a cultura organizacional das polícias no Brasil. “As polícias rodoviárias enfrentam problemas de corrupção bastante graves, dado o volume de coisas ilegais que passam ali. Então a gente precisa ter uma corregedoria forte, atuante, que resolva as coisas de forma rápida.”

Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz, concorda que se trata de um caso grave. Ele explica que, há décadas, o Paraguai exerce um papel estratégico no tráfico internacional de armas que abastece o crime organizado no Brasil. O relatório da CPI do Tráfico de Armas, realizada pelo Congresso Nacional em 2006, já apontava o país vizinho como uma das principais rotas de entrada de armamentos ilegais no Brasil — um cenário que, segundo ele, pouco mudou desde então.

“Dados da Operação Dakovo [deflagrada em dezembro de 2023 pelas polícias brasileira e paraguaia] revelaram que, entre 2019 e 2023, uma única empresa paraguaia, a IAS, importou 46 mil armas de fogo, das quais 17 mil chegaram ao Brasil, incluindo 2.656 fuzis”, diz Langeani. “Para se ter dimensão, o recorde anual de apreensão de fuzis no Rio de Janeiro é de 732 armas. Ou seja, a IAS sozinha poderia abastecer o Rio de Janeiro por três anos e meio, ou São Paulo por até vinte anos.”

Apesar disso, segundo Langeani, a maioria das armas nas mãos do crime organizado no Brasil ainda é de origem nacional. “Embora o Paraguai seja relevante nesse quadro, historicamente entre 50% e 70% das armas do crime no Brasil são de origem nacional, compradas legalmente e desviadas posteriormente dentro do país. E o afrouxamento regulatório do governo Bolsonaro, ao facilitar o acesso a armas para civis, tornou mais vantajoso para as facções criminosas comprar localmente.”

De fato, a investigação da PF demonstra que o esquema criminoso era sensível a essas mudanças regulatórias, em especial os decretos sobre os CACs – colecionadores, atiradores e caçadores, categorias que têm direito a posse e porte de armas de fogo. Em setembro de 2022, quando o STF restringiu uma parte desses decretos, o policial Vagner Freitas enviou uma mensagem a um de seus parceiros de negócios, dizendo: “Vamos ter que voltar às compras com o Hermano.” Os investigadores acreditam se tratar de uma referência ao paraguaio Bruno Amaral ou a seu irmão, Andrés, que também era proprietário da loja de armas.

Procurada, a defesa de Freitas e de sua esposa, Lígia Bachitchi, negou os fatos relatados na investigação da PF e classificou como “distorcidas” e “inverídicas” as informações citadas pela reportagem. Em mensagem enviada por aplicativo, o advogado André Ramos afirmou que seu cliente “nunca fez parte de nenhuma organização criminosa e muito menos cometeu qualquer crime”. Ramos, no entanto, não apontou quais seriam os erros da investigação e não respondeu a perguntas específicas.

A defesa de Bruno da Costa Amaral e de seu irmão Andrés não respondeu aos contatos da reportagem, assim como Sérgio Pacheco e sua mulher, Jusilane Barili. Os donos da loja Pesca & Cia não foram localizados. A reportagem tentou estabelecer contato, por e-mail, com os policiais Adriano Frasson e Afif Elias Neto, mas não obteve resposta.



A reportagem teve colaboração de Aldo Benítez (OCCRP).





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