Esta reportagem faz parte da Aliança Paraguai, projeto coordenado pelos consórcios jornalísticos Forbidden Stories e OCCRP em colaboração com piauí, Cuestión Pública, DDOSecrets, La Nación, La Diaria e IrpiMedia. O grupo ABC Color colabora com a divulgação das reportagens.

Tradução de Sérgio Molina e Rubia Prates.

O calor finalmente começava a dar trégua quando o jornalista Lourenço Veras se sentou à mesa para jantar com a mulher, o filho e o sogro, na noite de 12 de fevereiro de 2020. A família vivia em Pedro Juan Caballero, cidade paraguaia com cerca de 120 mil habitantes que faz divisa com Ponta Porã, em Mato Grosso do Sul. Veras conhecido pelos amigos como Léo – se mudara para o lado paraguaio em 2005, para cobrir de perto as atividades do crime organizado na fronteira. Sabia que corria grande risco ao fazê-lo, mas nunca voltou atrás nessa decisão.

Tão logo a família começou a jantar, dois homens encapuzados apareceram na sala de casa com armas em punho. Veras tentou correr para se salvar, mas não teve chances. Os homens atingiram-no com doze tiros à queima-roupa e fugiram em uma caminhonete Jeep Renegade branca. O jornalista chegou a ser levado ao hospital, mas não sobreviveu. Tinha 52 anos.

Grisalho, de olhos claros e barba branca, Veras era figura onipresente nas cenas de crimes de Pedro Juan Caballero (ou simplesmente Pedro Juan). O brasileiro era um dos poucos jornalistas locais que ousava publicar informações sobre o crime organizado e a rede de narcotráfico que liga o Brasil ao Paraguai. Ele fundou o próprio veículo, o portal Porã News, que abastecia geralmente com notícias curtas sobre acontecimentos da região. O crime era, e ainda é, o principal assunto, já que nas últimas décadas Pedro Juan se tornou um lugar particularmente violento.

Outros seis jornalistas foram mortos na cidade desde 1991. O assassinato de Veras, contudo, se tornou um caso exemplar não apenas da violência na fronteira, mas sobretudo da impunidade. Cintia González, a viúva do jornalista, vem pleiteando há mais de cinco anos que a morte de seu marido seja investigada, mas até hoje não obteve respostas satisfatórias. Só uma pessoa foi presa por suspeita de participação no crime, mas acabou solta por falta de provas. González conta que demorou um ano até ser chamada a depor, embora fosse uma testemunha ocular do assassinato. Além disso, ela diz que Justiça paraguaia nunca ofereceu um advogado que pudesse representá-la. Apesar da proteção policial temporária à sua casa, González achou mais prudente, por fim, deixar o Paraguai. Temia ser morta por falar abertamente do caso.

“Sabe-se muito bem de onde partiu a morte do Léo, mas todo mundo fechou os olhos”, diz González. “Não sei se o que acontece no Paraguai acontece em outros lugares.” A inércia na investigação sobre Veras não é, infelizmente, uma exceção. A Justiça paraguaia se tornou um buraco negro, que absorve o que lhe é jogado e não devolve nada. O consórcio jornalístico Forbidden Stories, em parceria com o OCCRP (Projeto de Investigação Sobre Crime Organizado e Corrupção, na sigla em inglês), obteve documentos dessa investigação que mostram uma série de negligências por parte das autoridades paraguaias. Pedidos de cooperação feitos por agentes brasileiros foram ignorados e evidências, descartadas. Também há indícios de que o país vizinho dificultou a investigação das autoridades brasileiras sobre o mandante do assassinato.

“Não estou dizendo que todos os promotores e juízes sejam corruptos, mas uma grande maioria deles é, sim”, diz Marta Ferrara, diretora da ONG paraguaia Semillas por la Democracia (Sementes pela Democracia). Cenário semelhante é descrito por Juan Martens, professor da Universidade Nacional de Pilar e diretor executivo do Instituto de Estudos Comparados em Ciências Criminais e Sociais (Inecip). “Há pessoas que querem fazer bem o seu trabalho, muita gente”, diz Martens. “Mas os que estão a serviço do crime organizado têm mais poder.” Na sua avaliação, os erros na investigação sobre a morte de Lourenço Veras configuram uma “utilização deliberada do poder do Estado para garantir a impunidade”.

Essa impunidade, que não é nova, ajudou a tornar o Paraguai um dos países com o mais alto índice de criminalidade da América Latina. No caso específico dos jornalistas, foram 21 profissionais mortos desde 1991, a metade deles em cidades situadas na fronteira de 1.365 km compartilhada pelos dois países.

Uma simples estrada, a Avenida Internacional Doctor Francia, separa Pedro Juan de Ponta Porã, sua cidade-irmã brasileira. Os veículos cruzam a fronteira com a mesma facilidade com que os habitantes alternam em suas conversas o espanhol, o português e o guarani – língua oficial no Paraguai, junto com o espanhol. Essa diversidade confere a Pedro Juan um aspecto cosmopolita em contraste com as cidades do entorno. Existe ali um shopping center bem equipado, hotéis com andares altos e veículos que trafegam carregando produtos diversos, de múltiplas nacionalidades. Entre eles, drogas e muitos produtos falsificados.

Pedro Juan se transformou num entreposto do crime organizado e ocupa um lugar importante na geografia de grupos como o PCC, hoje considerada a maior facção atuante no tráfico na América do Sul. Esses grupos trouxeram consigo uma onda de violência que se intensificou a partir de 2016, quando foi assassinado o empresário e traficante Jorge Rafaat Toumani, conhecido pelo apelido Saddam. Em 2020, o distrito de Amambay, onde fica a cidade de Pedro Juan, concentrou um terço dos homicídios do Paraguai, embora tivesse o equivalente a menos de 2% da população total do país.

Cintia González tem convicção de que seu marido foi morto por ter investigado o crime organizado, em especial o PCC. Um dos líderes da facção, Sérgio de Arruda Quintiliano Neto, conhecido como Minotauro, é suspeito de ter encomendado, da prisão, a morte de Veras, segundo documentos oficiais obtidos pelo Forbidden Stories. Essas mesmas fontes detalham o tamanho do império comandado por Minotauro. Um relatório produzido no Brasil e compartilhado com promotores paraguaios aponta que o traficante do PCC foi responsável por “transações multimilionárias de cocaína, incluindo remessas à Europa”, bem como assassinatos, construção de pistas de pouso clandestinas e compra de explosivos como o C4 (uma variedade comum de explosivo plástico, geralmente usada com fins bélicos).

Pedro Juan era o centro do poder de Minotauro, mas sua influência extrapolava os limites da cidade. Em 2019, ele foi preso no Brasil e condenado, no ano seguinte, a quarenta anos de prisão. Ainda assim, isolado em um presídio de segurança máxima, a Penitenciária Federal de Brasília, o traficante continuou a se comunicar com o lado de fora. Há indícios de que ele subornou dois promotores, Hugo Volpe Mazo e Armando Cantero, de algumas formas, inclusive com presentes valiosos. Segundo diferentes investigações jornalísticas publicadas entre 2020 e 2022, eles receberam uma caneta Montblanc banhada a ouro 18 quilates, um exemplar da primeira edição de O pequeno príncipe, além de 10 mil dólares em espécie. Procurado pelo Forbidden Stories, Volpe Mazo não se manifestou; Cantero não foi localizado.

A denúncia contra os dois promotores causou escândalo no Paraguai e virou notícia até mesmo no exterior. Empurrada pela repercussão que o caso tomou, a Justiça paraguaia se comprometeu a investigar a atuação de Minotauro e coibir o suborno a altos funcionários. Em 2020, com esse propósito, autoridades paraguaias e brasileiras formaram uma Equipe Conjunta de Investigação (ECI) e abriram um dossiê especial para o que chamaram de “caso Minotauro”.

Documentos obtidos pelo Forbidden Stories mostram, no entanto, que os promotores paraguaios pressionaram os brasileiros a restringir o escopo da investigação. Em uma mensagem enviada a um colega brasileiro, o procurador responsável pela Diretoria de Assuntos Internacionais do Ministério Público do Paraguai, Manuel Nicolás Doldán Breuer, sugeriu remover do acordo de cooperação “certas referências (…) que seriam politicamente inadequadas”. E prosseguiu: “Não houve alterações radicais [no acordo], mas expressões mais genéricas que se referem a autoridades e ex-autoridades do meu país.”

Dias depois dessa mensagem, em outubro de 2020, os dois países finalmente assinaram o acordo e criaram a ECI. Mas, conforme o tempo passava, só a investigação brasileira parecia avançar. Em agosto de 2021, Hindemburgo Chateaubriand Filho, subprocurador-geral da República do Brasil, pediu às autoridades paraguaias informações sobre o andamento do inquérito. Também perguntou se ainda havia interesse nele, já que, passado quase um ano desde que o acordo fora selado, os brasileiros não tinham recebido nenhum sinal dos paraguaios. “As tentativas do coordenador brasileiro da ECI de obter provas e informações junto às autoridades paraguaias têm se revelado infrutíferas, mesmo após reiterações”, escreveu Chateaubriand Filho, na época.

Meses depois, Alexandre Aparizi, o principal promotor brasileiro encarregado da investigação, demonstrou preocupação com o fato de o Paraguai não ter tomado providências contra os dois promotores acusados de corrupção, sobretudo porque o Brasil havia produzido informações de inteligência sobre a dupla. Aparizi mencionou também um documento que ele mesmo havia pedido em agosto de 2021 e que, em outubro, ainda não fora entregue. 

Uma autoridade brasileira familiarizada com o caso conversou com o Forbidden Stories sob condição de anonimato. Segundo ela, a investigação sobre Minotauro foi “difícil”, devido principalmente à paralisia no lado do Paraguai. O relato é parecido com o de um ex-promotor paraguaio ouvido pela reportagem. “Todos os processos ligados ao crime organizado – no momento, muito poucos – só são formalizados depois de grande pressão”, ele afirmou.

Procurado, o Ministério Público do Paraguai não respondeu a perguntas específicas da reportagem, afirmando apenas que não é possível compartilhar “dados sensíveis relacionados a processos penais em andamento”. Alexandre Aparizi, o promotor brasileiro, preferiu não comentar o caso e repassou as perguntas para a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal. Até a publicação desta reportagem, não houve resposta.

As coisas começaram a andar no início de 2022, quando os promotores paraguaios deram sinal de que pretendiam colaborar e toparam combinar uma reunião presencial com os pares brasileiros. O Forbidden Stories não conseguiu confirmar se essa reunião já ocorreu. Poucos meses depois, no entanto, o principal promotor paraguaio encarregado da investigação, Marcelo Pecci, foi morto enquanto passava a lua de mel na ilha colombiana de Barú. O assassinato fez com que o trabalho da promotoria retrocedesse ainda mais. Desde então, não houve novos avanços.

A investigação sobre Minotauro ilustra um padrão da Justiça paraguaia no que diz respeito ao crime organizado. Dados obtidos pela reportagem mostram que, entre 2014 e 2024, apenas 12% dos pedidos de cooperação jurídica que o Brasil enviou ao Paraguai receberam algum tipo de resposta. Os que foram adequadamente atendidos são cerca de 7% do total. Outros países também têm dificuldades para obter informações do Ministério Público do Paraguai. É o caso da Argentina, que tentou, sem sucesso, alertar as autoridades do país sobre o paradeiro de um traficante boliviano que atua em um cartel argentino e estava no Paraguai.

Não bastasse a inércia das autoridades, existe a suspeita de que um policial paraguaio tentou atuar na investigação sobre Minotauro a serviço de outro traficante. Um documento do Ministério Público brasileiro, datado de 2019, relata que um indivíduo identificado como Comando – um “agente de segurança pública paraguaio” – usou um sofisticado sistema de vigilância para localizar Minotauro. Segundo o documento, Comando, cuja identidade o Forbidden Stories não conseguiu confirmar, acessou ferramentas de inteligência da Polícia Federal brasileira e compartilhou informações com Jonathan Giménez Grance, sobrinho do notório traficante de drogas Jarvis Chimenes Pavão. Ambos, segundo o Ministério Público, tentaram “expor publicamente” informações sobre a atuação de Minotauro na Bolívia. Descobriram fazendas e pistas de pouso, e estavam dispostos a pagar pela captura de outros traficantes, incluindo integrantes do grupo guerrilheiro Exército do Povo Paraguaio (EPP).

Durante várias semanas, no final de 2018, o misterioso Comando, ao lado de Jonathan Grance, vigiou de perto pessoas do círculo íntimo de Minotauro. O plano, de acordo com o documento do Ministério Público brasileiro, era simples: Grance enviava a Comando números de telefone, perfis de mídia social e outras informações dos colaboradores de Minotauro. O policial paraguaio, por sua vez, rastreava a localização dessas pessoas usando ferramentas de interceptação.

A maquinação foi descoberta e não foi para frente. Procurada pela reportagem, a Polícia Nacional do Paraguai não se manifestou sobre as informações levantadas pelos promotores brasileiros. Nesse meio-tempo, a parte séria da investigação sobre Minotauro, que poderia ajudar a elucidar a atuação do PCC na fronteira e punir os responsáveis pela morte de Lourenço Veras, não produziu qualquer resultado. Desde que o promotor Marcelo Pecci foi morto, em maio de 2022, Cintia González não nutre esperanças de que isso vá acontecer.





Source link

Compartilhar.
Exit mobile version