Seis meses depois de receber a denúncia formulada pela Procuradoria-Geral da República, o STF inicia hoje o julgamento dos principais réus da tentativa de golpe. O tribunal atuou com agilidade neste caso, mas couberam muitos fatos novos em um curto espaço de tempo. Em junho, os interrogatórios televisionados complicaram a vida de alguns dos 31 réus que não souberam se esquivar das perguntas. Em julho, as alegações finais do procurador-geral Paulo Gonet incluíram novas evidências no processo. Em agosto, Alexandre de Moraes decretou a prisão domiciliar de Bolsonaro, com direito a uma tornozeleira eletrônica fartamente exibida, em inquérito paralelo ao do golpe, mas que inevitavelmente influencia o clima do julgamento agora em curso.

Nesta primeira etapa, serão julgadas as acusações contra Jair Bolsonaro, Mauro Cid, Walter Braga Netto, Alexandre Ramagem, Anderson Torres, Almir Garnier, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira – integrantes daquilo que a PGR chamou de “núcleo 1” ou “núcleo crucial” da tentativa de golpe. Diante do conjunto de evidências, a expectativa é de condenação para os oito. A imprevisibilidade ficará por conta de alguns pontos que podem render debates no tribunal e impactar tanto as imputações quanto a dosimetria das penas.

Esses pontos virão à tona quando, depois de ter lido seu relatório, Moraes passar a palavra aos advogados de defesa. É certo que eles contestarão a delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, pedindo sua anulação. Essa discussão não foi, até aqui, encarada de frente pelo Supremo, que já rejeitou pedidos de anulação do acordo mas nunca tratou do assunto com profundidade. Será um momento importante do julgamento.

Uma das alegações apresentadas pelos réus é a de que Mauro Cid foi forçado a delatar. Citam como evidência disso áudios, revelados pela revista Veja, em que o ex-ajudante de ordens diz ter sido pressionado pela PF a depor. Convocado a esclarecer o episódio logo depois, no entanto, Cid voltou atrás no próprio relato e garantiu que depunha por vontade própria. Por isso, é improvável que a delação seja anulada. Os advogados de defesa também dizem que Cid mentiu, omitiu e mudou suas versões. Neste caso, é algo com que a PGR já demonstrou concordar, afirmando que o ex-ajudante de ordens escondeu muitas informações cruciais para a investigação e foi evasivo nos seus depoimentos (Gonet, no entanto, não pediu a anulação da delação, que foi negociada diretamente pela PF).

Desse debate, pode emergir um reconhecimento de falhas na delação – e é possível que Cid perca parte dos benefícios que negociou. As provas não serão anuladas, mas podem perder credibilidade. Caso isso aconteça, a delação será mencionada nas sentenças e sua força será medida em conjunto, ou em confronto, com outras provas produzidas no curso do inquérito. Os relatos que forem corroborados, ficam; os que não se sustentarem, saem. É improvável, no entanto, que esses ajustes resultem na absolvição de um dos réus.

 

A votação dos ministros só começará depois que, superados esses debates, o relator Alexandre de Moraes se posicionar sobre quem cometeu quais crimes e indicar as penas correspondentes. A questão crucial que vai definir sua decisão – e o desfecho do julgamento – é: o quão perto estivemos da abolição do estado democrático de direito?

O Código Penal desenha um gradiente punitivo desde a cogitação do crime até sua prática efetiva. Para decidir onde o réu se situa nesse gradiente, é preciso levar em consideração dois fatores: o quão próximo ele esteve de chegar ao resultado (isto é, ao crime) e o papel que desempenhou na trama. Só se começa a falar em punir alguém quando o bem jurídico atrelado ao crime (neste caso, a ordem democrática) passa a estar em efetivo perigo. É o que, no vocabulário jurídico, chama-se início de execução. Tudo que acontece antes ou é mera ideia, cogitação, ou é ato preparatório. E nenhum dos dois é passível de punição. Assistiremos novamente, portanto, a um debate que vem se repetindo desde o começo das investigações: os réus podem ser condenados se não houve golpe? Esse será o ponto fulcral do julgamento, ainda que, a essa altura, não haja mais margem para dúvidas.

Afinal, nem toda empreitada criminosa alcança seu objetivo, e nem por isso deixa de ser criminosa. O sujeito pode ser interrompido contra sua vontade – situação que se classifica como tentativa e é passível de punição. Ele pode, ainda, desistir de seguir adiante com seu plano criminoso, hipótese conhecida como desistência voluntária e que só será passível de punição se o sujeito, antes de desistir do crime final, já tiver praticado outro no caminho.

A PGR entende que existiram ações concretas para viabilizar o golpe, todas comprovadas, e que elas representaram um risco efetivo à ordem democrática. O golpe só não ocorreu por circunstâncias externas à vontade dos agentes (a falta de apoio do comando do Exército, por exemplo). Ou seja: houve, sim, tentativa. As defesas, por sua vez, com exceção da de Mauro Cid, alegam que nunca houve cogitação de golpe. Como tese alternativa, algumas delas dizem que, ainda que se chegue à conclusão de que havia um golpe em gestação, ele não foi além dos atos preparatórios – e se foi, houve desistência voluntária dos réus. É provável que os advogados, na tentativa de emplacar essa tese, concentrem seus esforços no 8 de janeiro. Afinal, muitos dos réus já não ocupavam cargos públicos quando aconteceu a invasão à Praça dos Três Poderes – evento que, mais do que qualquer outro, demonstra concretamente o risco a que a democracia esteve exposta. Bolsonaro e Anderson Torres poderão dizer que sequer estavam no Brasil naquela data.

O vasto material colhido pela PF, no entanto, demonstra claramente que o 8 de janeiro não foi “o dia do crime”, mas apenas um episódio de uma trama muito mais ampla iniciada dois anos antes. A invasão em Brasília se situa numa sucessão de atos golpistas cujo reconhecimento deve se dar pelo conjunto da obra e pelo objetivo final que os réus almejavam. Dois momentos em particular demonstram o quão perto estivemos de um golpe: a reunião de Bolsonaro com os chefes das Três Forças para tratar de uma intervenção militar e o plano Punhal Verde e Amarelo. Pode-se presumir que, se Freire Gomes não tivesse resistido ao chamado, os tanques estariam nas ruas no momento seguinte. Quem poderia freá-los? Ninguém. É possível também afirmar com segurança que, se Lula, Geraldo Alckmin e Moraes fossem assassinados, já não seríamos uma democracia. 

Tudo indica que esse deve ser o entendimento da maioria da Primeira Turma do STF. De qualquer forma, mesmo que se livrem da acusação referente ao 8 de janeiro, os réus deixarão de responder apenas pelos crimes de dano qualificado e de deterioração de patrimônio tombado. Não são as imputações mais graves. Se isso acontecer, suas penas podem ser reduzidas entre 18 meses e 6 anos. Permanecerão as imputações por tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, golpe de Estado e organização criminosa – crimes que, somados, podem resultar em penas de até 38 anos de prisão.

 

Caso as condenações se confirmem, quando será a prisão dos réus? Como o leitor já deve saber a essa altura, nenhuma resposta é simples no direito, e o grau de indefinição é ainda maior em um caso como esse, que não tem precedente na história brasileira. É possível que algum ministro peça vista, ou seja, retire o caso de julgamento para refletir melhor. Se o fizer, ele ou ela terá até noventa dias, prorrogáveis por mais noventa, para apresentar seu voto. É possível, portanto, que o julgamento só seja concluído daqui a seis meses.

Um pedido de vista tão longo, no entanto, é improvável, devido a alguns fatores. O primeiro deles é o fato de que o STF está sob ataque do governo americano, e está claro para todos que postergar o julgamento resultaria no prolongamento das sanções impostas por Donald Trump. Empurrar a decisão para 2026 também impactaria o funcionamento normal do Congresso (vide o motim bolsonarista) e dificultaria a reorganização da direita em um ano eleitoral. Os apoiadores do ex-presidente podem não ficar contentes com o desfecho do julgamento, mas, mesmo para eles, é melhor um fim horroroso que um horror sem fim.

E, mesmo que haja um pedido de vista, isso não significa a paralisia total do processo. Os outros ministros podem, como acontece rotineiramente, antecipar seus votos, deixando o pepino no colo de quem tirou o caso de julgamento. Nesse cenário, caso se forme maioria pela condenação, Moraes poderá impor medidas cautelares aos demais acusados, que já estarão virtualmente condenados. O pedido de vista, portanto, resulta praticamente inócuo. Por todos os ângulos que se analise, não parece haver ganhos em postergar a decisão.

Até a conclusão do julgamento, devem ser debatidas outras questões relevantes, entre elas os embargos infringentes. Esse tipo de recurso é previsto no Código de Processo Penal para que o réu possa apelar de uma decisão em segunda instância que lhe foi desfavorável, contanto que a decisão não tenha sido unânime. Amplia-se o número de julgadores, dando uma chance para que o voto minoritário, que beneficiava o réu, se torne majoritário. 

Usuais em tribunais de outras instâncias, os embargos infringentes não têm um parâmetro claro de aplicação no STF, que nunca os regulou propriamente. No único precedente que existe sobre o tema, a tese ficou assim: eles são cabíveis quando houver dois votos dissidentes “absolutórios” – isto é, que não apenas defendam uma pena menor ou uma tipificação mais leve, mas que declarem o acusado inocente. Isso não possibilita, porém, uma revisão geral do julgamento feito pela turma: os embargos limitam-se ao assunto específico em que houve divergência. Tudo que tiver sido unânime continua como estava.

Caso haja embargos infringentes, portanto, é possível que as votações da Primeira Turma que terminarem com placar de 3 a 2 sejam levadas ao plenário do STF, para que a tipificação e a pena (mas nunca a condenação) sejam debatidas. Nas mãos de onze ministros, e não apenas cinco, Bolsonaro e os demais réus provavelmente colherão algumas pequenas vitórias simbólicas, com votos favoráveis de ministros como André Mendonça e Kassio Nunes Marques. Mas não conseguirão mais do que isso: concessões simbólicas, já que a discussão, se houver, tratará apenas de divergências pontuais, e não da decisão de condená-los ou não. Ainda assim, me parece desejável que os embargos sejam admitidos pelo STF. Melhor seria ainda que bastasse apenas um ministro divergente, e não dois, para possibilitar esse recurso. Assim, o tribunal demonstraria mais uma vez seu compromisso com o direito à ampla defesa dos réus e se blindaria de novos ataques.

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