“Esse nome não entra na minha cabeça”, disse a porteira Agda Soares, de 48 anos, enquanto preparava um café na cozinha de seu apartamento na Cidade Tiradentes, extremo Leste de São Paulo, em um condomínio da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), a tradicional empresa municipal responsável por conduzir a política de moradia social na cidade. Alienação fiduciária – eis o termo que tem atormentado sua vida. “Quando soube que minha casa foi leiloada, conversei com uma advogada do prédio onde trabalho. Ela me perguntou: ‘Agda, você sabe o que significa alienação fiduciária?’ Eu não fazia a menor ideia.” Trata-se de, em juridiquês fluente, um método de financiamento utilizado sobretudo para carros e imóveis. Quando o devedor deixar de pagar as parcelas, o credor tem o direito de reaver o bem.
Agda foi penalizada com a ordem para que deixe (e perca em definitivo) o imóvel onde vive há 21 anos. Mas ela se nega a acatar a decisão, resolveu não sair de casa e processar a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Seu caso chama a atenção pelo o valor módico da dívida, de apenas 1.923,17 reais, pouco mais que um salário mínimo. O tempo da inadimplência é de cinco meses, segundo ela (a prefeitura confirma o valor, mas afirma que são catorze meses). Um inquérito civil público movido pelo Ministério Público de São Paulo investiga outros casos semelhantes de mutuários inadimplentes que perderam ou estão em vias de perder seus imóveis da Cohab.
A Promotoria e a Defensoria Pública estão de olho no destino desses imóveis: imobiliárias que não fazem parte da política de moradia social e adquirem as unidades para revendê-las logo depois, com ampla margem de lucro.
A piauí teve acesso a treze processos movidos pela empresa Martins Imóveis para despejar os antigos moradores – em cinco deles, já conseguiu a remoção das famílias. Os imóveis têm 48 m² e foram arrematados pelo preço médio de um carro usado, 71 mil reais. Ao todo, a quantia despendida para comprar os treze imóveis não chega a 1 milhão: foram 928,6 mil reais, pagos à vista à prefeitura em leilões ocorridos entre setembro de 2023 e 2024. É um investimento e tanto: em seu site, os imóveis foram colocados para revenda por até 160 mil reais, mais do que o dobro do preço pago. Ou seja: casas de programas sociais usadas para especulação imobiliária.
Os imóveis são leiloados no Portal Zuk, especializado nesse tipo de concorrência. Para dar lances, basta fazer um cadastro. O nome e os dados dos participantes não ficam visíveis durante a competição. As ofertas não costumam atingir o valor mínimo pedido na primeira rodada. Na segunda, o preço cai e os imóveis são arrematados com um desconto de até 60% do valor inicial. Segundo a prefeitura, os recursos do órgão são destinados a projetos de interesse do município como a Parceria Público-Privada da Cohab.
A Martins Imóveis, localizada na Zona Leste de São Paulo, tem aproveitado bem a oportunidade. É hoje proprietária de 23 apartamentos construídos pela Cohab, todos espalhados pelas periferias da capital paulista.
A piauí foi à Martins Imóveis no dia 2 de setembro para falar com Angelo Martins, dono da imobiliária, mas ele não estava no local. Ele foi procurado por telefone e e-mail, mas não respondeu aos contatos da reportagem.
Apesar de não mencionar especificamente nenhuma imobiliária no inquérito, o Ministério Público afirma que o sistema de vendas dos apartamentos da Cohab indica um “desvirtuamento da política de habitação social que está beneficiando pessoas que não se encaixam no perfil trabalhado pela Cohab e até pessoas jurídicas”. O inquérito foi aberto após o MP ser procurado por mutuários que perderam suas casas nos leilões.
O promotor Moacir Tonani Júnior, que está à frente das apurações na Promotoria de Habitação e Urbanismo, disse à piauí que tem participado de reuniões com a prefeitura paulistana para tentar condições mais razoáveis de negociação da dívida junto às famílias, a suspensão da alienação fiduciária nos contratos da Cohab ou, no mínimo, impedir que os imóveis sejam transferidos para a iniciativa privada. O promotor opina que os apartamentos recuperados pelo poder público deveriam ser disponibilizados no programa social novamente.
Ao todo, pouco mais de 10 mil famílias de baixa renda tinham contratos inadimplentes com a Cohab em julho do ano passado, correndo o risco de serem despejadas pelo mecanismo adotado pela prefeitura, segundo um estudo do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade, o LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Em nota, a prefeitura informou que desde 2023 até meados de agosto, 99 apartamentos da Cohab foram leiloados, mas é possível que a contagem esteja defasada.
O apartamento onde Agda vive e que é alvo da disputa com a Prefeitura de São Paulo pertencia a sua mãe, Aparecida Soares, que morreu de infarto há três anos. Segundo Agda, ao iniciar os trâmites para se tornar proprietária do imóvel avaliado em 45 mil reais, ela foi informada pela Cohab que ainda havia 32 mil reais a serem pagos até a quitação, referentes não só ao saldo devedor normal do financiamento, mas também a algumas parcelas em atraso. Seria preciso, portanto, renegociar o valor pendente e assinar um novo contrato em seu nome.
O novo acordo foi elaborado pela Companhia São Paulo de Desenvolvimento e Mobilização de Ativos, empresa municipal de capital misto conhecida pela sigla SPDA, que administra os 31 mil contratos da Cohab. Nas renegociações com os mutuários inadimplentes, a empresa tem incluído desde abril de 2021 a cláusula de alienação fiduciária.
“Fui à SPDA e eles disseram que iriam parcelar a dívida da minha mãe junto com o financiamento. Cada uma das 120 parcelas ficou em 254 reais para serem pagas em 10 anos de financiamento. Era um valor justo que eu conseguia pagar. Li o contrato duas vezes. Para mim, era uma negociação normal. Não tinha entendido o que realmente significava. Eles não explicaram nada. Continuei pagando normalmente.”
Pouco tempo depois de assinar o vínculo, Agda perdeu o emprego como cozinheira em uma escola particular, ficou cinco meses sem trabalho e atrasou as parcelas, totalizando a dívida de 1.923,17 reais que a fez perder seu imóvel. “A SPDA disse que eu deveria pagar à vista ou entrar na Justiça. Eu não tinha esse dinheiro. Liguei várias vezes para tentar negociar, mas disseram que estavam sem sistema. Eles são bem grossos quando falam com a gente, não tentam entender o problema, falam que você precisa pagar de uma vez. Então recebi um telegrama dizendo que o apartamento estava em leilão.”
Uma auditoria da Grant Thornton, disponibilizada no site da B3, apontou que o Fundo SPDA respondia a 107 processos judiciais até dezembro do ano passado referentes a ações de pessoas que perderam seus imóveis.
Em agosto do ano passado, o apartamento foi vendido pela SPDA por 53,4 mil reais. Agda conta que, pouco tempo depois da venda, recebeu a visita de um homem perguntando se ela não aceitaria readquirir a propriedade. Ela não soube dizer se o rapaz era um representante de alguma imobiliária específica ou o sujeito que havia comprado seu imóvel. “Ele ofereceu o apartamento de volta por 95 mil reais, quase o dobro do que pagou. Depois começou a enviar notificações extrajudiciais pedindo para eu sair”, conta ela, que entrou na Justiça pedindo o cancelamento do leilão. “Decidimos resistir e só sair quando o juiz decidir que temos que ir embora.”
De acordo com o inquérito do Ministério Público, o relato de Agda é recorrente entre os mutuários da Cohab ouvidos pela Promotoria e em atendimentos da Defensoria Pública de São Paulo. Os moradores reclamam que não foram alertados da gravidade da inclusão da alienação fiduciária incluída em seus contratos, assim como do juridiquês quase incompreensível do termo, o que, segundo o Ministério Público, pode denotar “vício contratual”. “A gente questiona a lealdade nessa negociação. Lá atrás, quando esses contratos foram assinados, não havia a cláusula de alienação fiduciária. Então ela é incluída de forma unilateral. É ilegal? Não. Mas é uma forma coercitiva, porque as pessoas não sabem exatamente o que estão assinando”, diz o promotor Tonani Júnior.
O documento do Ministério Público cita práticas definidas como “abusivas”, como “cobranças não precedidas de informes adequados, dificultando a renegociação de débitos e levantando questões sobre a proteção contra métodos comerciais coercitivos ou desleais, e o aproveitamento da fraqueza ou ignorância do consumidor”.
Questionada sobre a investigação do Ministério Público e as críticas da Defensoria Pública, a prefeitura afirma que o “leilão de imóveis é sempre a última alternativa para a recuperação dos créditos dos inadimplentes”. A prefeitura disse também que, “sem exceção, são oferecidas a todo mutuário diversas oportunidades de regularizar sua situação”. Segundo a prefeitura, os imóveis leiloados representam apenas 1% dos pouco mais de 31 mil contratos administrados pela SPDA. Entre junho do ano passado e abril deste ano, a gestão Nunes pediu o arquivamento do inquérito em quatro oportunidades, todos rejeitados pelo Ministério Público, que segue com as apurações.
Em acordo com o órgão e a Defensoria Pública, a prefeitura suspendeu os leilões em setembro de 2024 por 120 dias, prazo que expirou em janeiro. Em junho deste ano a administração retomou as vendas. Atualmente, a taxa de inadimplência entre os mutuários é de 40%, ou seja, cerca de 12 mil dos 31 mil contratos geridos pela SPDA.
Para Taissa Pinheiro, coordenadora do núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo, o modelo de recuperação e venda do imóvel adotado pela prefeitura deve ser revisto. “Notificam o morador. Se não pagar à vista, a casa vai a leilão sem que ele possa sequer se defender na Justiça. Quando esse imóvel vai para a iniciativa privada, caem por terra todo o esforço e os recursos públicos aplicados nele. O apartamento não está mais cumprindo a função para o qual ele foi construído: beneficiar as famílias de baixa renda”, diz Pinheiro.
Em 2016, a Defensoria entrou na Justiça contra o uso da alienação fiduciária na Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), empresa de moradia do governo estadual. Argumentou que o mecanismo foi criado para o mercado imobiliário e não deveria ser usado com famílias de baixa renda. A Defensoria venceu nas duas primeiras instâncias, mas perdeu no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. O órgão considerou não existir ilegalidade no mecanismo de cobrança e leilão.
Atualmente, o programa de moradia da Cohab destina-se a famílias com quatro faixas de renda, sendo a primeira com famílias cujo rendimento é de até três salários mínimos e a última até dez salários mínimos. A Cohab informou que 55,4% das famílias beneficiárias têm uma renda mensal bruta entre 759 e 1.800 reais. Outras 34,3% ganham até seis salários mínimos (9.100 reais) por mês.
Para além da renda, há outros dois critérios de seleção: os beneficiários não podem ser proprietários de outro imóvel nem terem participado de outro programa de habitação social em território nacional. São priorizadas famílias chefiadas por mulheres e que apresentem um ônus excessivo com aluguel, cuja renda mensal esteja comprometida em 30% ou mais do salário. Hoje, a fila de moradia da Cohab tem 344,3 mil famílias cadastradas.
“As pessoas estão perdendo suas casas para imobiliárias por dívidas de 5 mil reais. Isso é muito grave”, diz Gisele Brito, coordenadora de Clima e Direito a Cidades Antirracistas do Instituto Peregum e doutoranda em planejamento urbano pelo LabCidade, da USP. “Os prédios da Cohab são ocupados em grande parte pela população negra, enquanto a verticalização na região central, do mercado imobiliário, é branca e de classe média. Para onde essas famílias despejadas vão? Para áreas ambientalmente vulneráveis, como favelas e encostas.”
A gestão Nunes informou que existem projetos de renegociação em andamento, como o Cohab Negocia, que dá desconto de até 70% no saldo devedor, e o Cohab Premia, que concede prêmio de 5 mil reais para mutuários que estão com as prestações em dia (o valor deve ser utilizado para abater o saldo devedor do financiamento do imóvel). De acordo com a gestão, já foram contemplados 262 mutuários, com montante de 1,3 milhão de reais em prêmios. No caso de Agda Soares, no entanto, esses programas não foram oferecidos.
Cohab é um substantivo comum ao paulistano periférico: seus condomínios com milhares de prédios são citados em letras de rap e samba e até viraram nomes alternativos para alguns bairros da Zona Leste, como “Cohab 1” para Artur Alvim e “Cohab 2” para José Bonifácio. O maior deles fica em Cidade Tiradentes, com 40 mil apartamentos e 194 mil moradores, o maior complexo habitacional da América Latina. Seu modelo é oriundo da ditadura militar, que o idealizou para comportar a expansão urbana na cidade nos anos 1980, explicou o cientista social Tiarajú Pablo D’Andrea, coordenador do Centro de Estudos Periféricos da Unifesp.
“São Paulo tinha 1,4 milhão de habitantes em 1940. Em 1980, já eram 8,5 milhões, grande parte de migrantes nordestinos. É quando surgem as periferias como conhecemos. A Cohab é criada para atender pelo menos três interesses: dar uma resposta de habitação para a população pobre, acalmar os ânimos de um possível ímpeto revoltoso dessa população e destinar recursos públicos para empreiteiras. Além disso, a expulsão dos pobres das regiões centrais e mais ricas da cidade.”
Esses grandes condomínios se consolidaram nos extremos de São Paulo entre as décadas de 1970 e 1980. Se por um lado a Cohab beneficiou milhares de famílias pobres, por outro, essa população continua sofrendo com a distância e dificuldade de acesso a serviços básicos, como transporte, educação e comércio. Do Centro à Cidade Tiradentes, por exemplo, a viagem dura cerca de 2 horas em um trajeto de metrô, trem e ônibus. Uma extensão da linha 15-prata (monotrilho) está prevista para chegar ao bairro, mas ainda não há data para a entrega. Outra obra muito esperada é a instalação de um campus do Instituto Federal de São Paulo, prevista para 2026. No emaranhado de ruas com prédios enfileirados, o poder público não criou sequer espaços para o comércio local – até hoje, padarias e mercados são improvisados em áreas inicialmente planejadas como garagem.
Foi ali, no extremo Leste paulistano, que germinou, no ano passado, o movimento “Reaja Cohab”, formado por mutuários inadimplentes. A ideia é pressionar a prefeitura para interromper os leilões e renegociar as dívidas de maneira justa. Em maio, a piauí acompanhou um dos encontros realizados em um teatro na Cidade Tiradentes. A maioria dos presentes eram idosos. Os relatos eram de assédio de escritórios de advocacia que tiveram acesso aos dados pessoais e ofereceram o cancelamento do leilão por 8 mil reais.
Agda Soares é uma das lideranças do Reaja Cohab. Ela tem visitado vereadores e participado de audiências públicas. “A gente explica que dessa vez é diferente, que a Cohab está tirando os imóveis mesmo. Tem gente que não acredita, tem vergonha de aparecer. Eu conto minha história para todo mundo.”
Por ora, seu destino é incerto. Enquanto corre o processo contra a prefeitura, o comprador do imóvel entrou com uma ação para despejá-la e saiu vitorioso. Ela e o filho têm até o dia 12 de outubro para deixar o lugar onde viveram nos últimos 21 anos. “Vamos ter que ir para o aluguel. Deus prepara a gente, dá força, mas estou arrasada”, disse Agda. A piauí tentou falar com o novo dono do apartamento, mas não obteve resposta. No processo, ele informou que pretende se mudar para Cidade Tiradentes. Atualmente, mora em um condomínio de classe média com piscina e academia, no Morumbi.