Aos 17 anos, Callyandra Santos, moradora do bairro do Coque, em Recife — uma das áreas mais vulneráveis da capital pernambucana —, viveu desde criança a sensação de ouvir música até em meio aos estampidos das ruas. “A música na cabeça obstruía até os sons dos tiros”, conta. Quando tinha apenas 9 anos, ela ingressou na Orquestra Criança Cidadã, projeto social que já transformou a vida de mais de 700 jovens ao longo dos seus 18 anos de existência.

Agora, Callyandra é uma das 11 selecionadas para integrar a orquestra jovem do Recife na turnê internacional “Concertos pela Paz”, que reunirá músicos de países em conflito e promoverá apresentações na Ásia e na Europa.

A agenda da turnê inclui paradas em:

  • Seul (Coreia do Sul) – 30 de setembro
  • Hiroshima e Osaka (Japão) – 4 e 5 de outubro
  • Roma (Itália) – 7 de outubro
  • Vaticano (encontro com o Papa Leão XIV) – 8 de outubro

A iniciativa reúne jovens músicos de diferentes nacionalidades, como Palestina, Israel, Rússia, Ucrânia e Coreias, unidos pelo objetivo de mostrar como a arte pode ser instrumento de paz.

“Nada foi em vão” — histórias que inspiram

A trajetória de Callyandra se entrelaça com a de sua mãe, Sara Coutinho, que trabalha madrugadas inteiras numa fábrica de refrigerantes e só consegue ouvir os ensaios da filha no horário de almoço. A mãe, que é mãe solo, relata orgulho e emoção com essa oportunidade para a filha.

Ela conheceu o projeto musical por meio do sobrinho Davi Andrade, que iniciou na orquestra aos 7 anos, se formou em música pela UFPE, tornou-se professor e também embarcará nessa turnê.

Para Callyandra, ter Davi como primo e professor serviu de inspiração. Ela planeja ingressar na faculdade de música no próximo ano. A lembrança da avó, vítima da Covid em 2020, também reforça no presente a urgência de valorizar cada nota.

Durante os concertos, ela poderá emocionar o público tocando a “Suíte para violoncelo Nº 1” de Johann Sebastian Bach, peça que lhe encanta e marca sua expressão entre passado e futuro.

Orquestra Criança Cidadã: história, alcance e propósito

O projeto foi idealizado em 2006 pelo juiz João José Rocha Targino como uma iniciativa social para crianças de comunidades com baixos índices de desenvolvimento humano. O bairro Coque foi escolhido como primeiro núcleo, justamente por seus desafios sociais.

Atualmente, a orquestra atende cerca de 400 jovens entre 6 e 21 anos nos núcleos do Coque, Ipojuca (Camela) e Igarassu (Chã de Cruz), com aulas gratuitas de instrumentos (cordas, sopros, percussão), teoria, musicalização, canto, flauta doce, além de apoio pedagógico, psicológico, médico, odontológico, retorno social e alimentação.

Uma inovação relevante é a EFLA (Escola de Formação de Luthier e Archetier), onde alunos aprendem a construir e reparar instrumentos de cordas e seus arcos — uma opção rara de profissionalização nessa área no Brasil.

Com o mote “com a arte, não há guerra”, o projeto institucionaliza os Concertos pela Paz como missão e estratégia para promover diálogos culturais e sensibilização global.

O repertório oficial da turnê inclui obras como compositores brasileiros (Villa-Lobos) e internacionais, além de medleys que trazem músicas populares latinas, sapateados e composições clássicas.

Entre os músicos já formados pelo projeto, destaca-se Antonino Tertuliano, que nasceu no Coque, entrou na orquestra aos 14 anos e hoje mora na Alemanha, atuando em orquestras europeias e colaborando com o projeto durante suas visitas ao Brasil.

Para muitos dos participantes, o projeto vai além da técnica musical. O violinista Pedro Martins, por exemplo, conta que começou com o lápis como arco e uma caixa de sabão como instrumento. Sua trajetória o levou ao curso de música na UFPE.

O primo Davi reflete que, no Coque, a orquestra teve papel transformador ao reunir jovens de famílias ligadas a facções inimigas e aproximá-los por meio da música. Ele afirma que “a música ajudou a estabelecer a paz muitas vezes”.

O maestro José Renato Accioly, responsável pela regência da turnê, destaca o desafio de reunir jovens de diferentes contextos culturais e reafirma que a linguagem universal da música sustenta essa integração.

Assista um pouco do que vai vir na apresentação

Nordeste como palco de talentos e embaixador cultural

A participação da Orquestra Criança Cidadã na turnê internacional reafirma o Nordeste como celeiro de talentos e agente de transformação social. Portanto, Projetos como esse mostram que, mesmo em territórios marcados pela desigualdade, a cultura e a educação podem gerar oportunidades concretas e abrir caminhos que atravessam fronteiras.

Afinal, com jovens do Recife levando suas histórias e sons para o mundo, o Nordeste se consolida não apenas como berço de tradições culturais, mas também como protagonista na construção de diálogos globais, unindo arte, inclusão social e diplomacia cultural.

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