Oúltimo azul, de Gabriel Mascaro, estreia nesta quinta-feira (28) no circuito brasileiro de cinemas, credenciado pelo troféu Urso de Prata recebido, em fevereiro, ao ganhar o Grande Prêmio do Júri no 75º Festival de Berlim. Nesse mesmo evento, outros dois prêmios foram atribuídos ao filme por júris paralelos à mostra principal. O último azul foi coberto de louvores por diversos críticos e depois fez carreira que continua em curso nos festivais internacionais, além de ter sido exibido hors-concours, há duas semanas, na abertura do Festival de Gramado.
A acolhida incomum a O último azul é mais que merecida. Trata-se mesmo de um filme excepcional cujo impacto foi realçado, para mim, por uma coincidência imprevista que demonstra o dom premonitório do roteiro de Mascaro e Tibério Azul.
Horas depois de assistir a O último azul pela primeira vez, há pouco mais de uma semana, tive notícia do que escreveu o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em publicação na rede social Truth: “Os museus em Washington, mas também em todo o país, são, essencialmente, o último segmento remanescente do ‘WOKE’ [termo pejorativo usado para desqualificar as políticas identitárias]. O Smithsonian [instituição que administra 21 museus] está FORA DE CONTROLE, onde tudo o que se discute é quão horrível é nosso país, como a escravidão foi ruim e como os malsucedidos foram desfavorecidos – nada sobre sucesso, nada sobre brilhar, nada sobre o futuro.”
Essa valorização idealizada do “futuro”, contraposta na frase de Trump à consciência crítica a respeito de questões sociais e políticas do passado, chamou minha atenção, em especial por eu ter assistido a O último azul naquela manhã. O viés autoritário do presidente republicano dá vazão à sua prepotência pessoal e à ambição de exercer controle social absoluto. Ele governa com o objetivo de consolidar o poder tirânico de um Estado policial que, além do mais, pretende interferir na soberania de outros países. Ter “sucesso” e “brilhar”, voltado para “o futuro”, são prioridades almejadas por essa ideologia que tem adeptos grosseiros em países menos poderosos. Diante disso, não é por nada haver quem fale em “ecos orwellianos”, perceptíveis também na distopia realista sobre a Amazônia contemporânea, de Mascaro e Azul.
No primeiro plano de O último azul, uma cidade à beira de um rio é sobrevoada por um avião que ressurge na sequência final do filme, trazendo a reboque, nos dois momentos, uma faixa onde se lê O FUTURO É PARA TODOS em letras maiúsculas. Afirmação cuja falsidade não tarda a ser comprovada diante do tratamento discriminatório aos idosos no país. Na abertura, próximo ao final dos créditos, começa-se a ouvir o ruído do motor do avião, seguido da voz em off de um locutor, possivelmente de um rádio, difícil de entender em parte:
Bom dia, povo brasileiro… um abraço apertado em cada um de vocês… Cuidar dos mais velhos não é uma escolha, é um dever patriótico. O governo está sobrevoando o céu glorioso do nosso Brasil para prestar uma homenagem e garantir que vai proteger aqueles que representam a história do nosso povo… O nosso país está… rumo ao futuro… o futuro é para todos.
Além de orwelliano, nesse caso o texto ecoa também a publicidade oficial da ditadura militar brasileira, em especial na década de 1970.
Tereza diante de um “cata-velho”, como os personagens se referem ao carro da polícia – Crédito: Divulgação
Pouco antes de O último azul terminar, a insubmissa Tereza (Denise Weinberg), protagonista em fuga das restrições impostas aos idosos, está navegando rio acima no Caridad, barco no qual Roberta (Miriam Socarrás) a acolheu e com quem ela seguiu viagem. Tereza desperta e se levanta, ouvindo o motor do avião seguido do locutor:
Bom dia, povo brasileiro. Estamos sobrevoando de Norte a Sul do nosso país, compartilhando nossa mensagem. Erga a cabeça e olhe para o céu agora. Aqui de cima já podemos ver o seu futuro. É tempo de renovar a esperança. É tempo de decolar.
Ouvimos a última frase do ponto de vista de Tereza, na lateral do barco. O avião sobrevoa as palafitas na beira do rio, levando a reboque a faixa onde está escrito O FUTURO É PARA TODOS. Tereza parece observar o avião enquanto o ruído do motor vai diminuindo até sumir.
O propósito da jornada de Tereza era “decolar”. O que ela mais queria era voar. Terá percebido o engodo contido na afirmação de que o futuro está à vista, está na hora de “renovar a esperança” e “é tempo de decolar”?
Tereza dá um passo à frente até ver Roberta com as mãos na roda do leme, pilotando o barco. Intrigada, volta a olhar por um instante em direção à margem do rio. Ao afastar do rosto seu cabelo branco esvoaçante, soa a introdução instrumental de uma canção. Tereza desvia, outra vez, o olhar que parece se fixar na água do rio com o reflexo do sol. Observando Tereza e Roberta navegando no Caridad, ouvem-se os primeiros versos de Rosa dos Ventos, de Chico Buarque, cantada por Maria Bethânia, que prossegue nos créditos de encerramento até os versos finais que são repetidos duas vezes: “Numa enchente amazônica/ Numa explosão atlântica/ E a multidão vendo em pânico/ E a multidão vendo atônita/ Ainda que tarde/ O seu despertar.”
É um final arrebatador, mas que parece fora de lugar. Não seria mais adequado terminar em tom menor? De qualquer modo, a derrapada não ofusca a excelência de O último azul, graças às notáveis contribuições já mencionadas, além das demais, entre elas de Guillermo Garza (direção de fotografia); Dayse Barreto (direção de arte); Gabriella Marra (figurino); Sebastián Sepúlveda e Omar Guzmán (montagem), assim como do numeroso elenco, no qual mais de vinte atores são amazonenses. A destacar ainda as magníficas locações em Manaus, Manacapuru e Novo Airão.
Em entrevista ao blog do Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, Mascaro disse que “a história evoluiu para algo quase distópico, mas ainda com uma energia utópica e afetuosa.” Para essa utopia, segundo ele, era essencial criar “um filme sobre o direito de sonhar”.