O ato mais hediondo cometido pelos militares durante a ditadura na Argentina foi o desaparecimento de pelo menos 358 mulheres grávidas. Capturadas, elas eram mantidas em centros clandestinos de detenção até darem à luz. Em seguida, eram separadas de seus bebês e levadas embora – para nunca mais serem vistas. Os recém-nascidos eram então entregues a outras famílias, muitas delas chefiadas por militares e policiais. O mesmo destino tiveram meninos e meninas capturados junto com os pais nas batidas policiais: as crianças recebiam certidões de nascimento falsas, com novo nome, novas datas e novos pais. Seus vínculos familiares eram eliminados, tal como foi feito com seus pais.
Numa época em que, por muito menos, a pessoa podia ser arrancada de casa e torturada, as avós dessas crianças logo se mobilizaram para encontrar seus netos. Elas acorriam às igrejas, aos tribunais, ao Ministério do Interior, a qualquer lugar onde pudessem obter informações. Por fim, muitas se encontraram e formaram uma organização, Abuelas de Plaza de Mayo. Nessa praça localizada em frente à Casa Rosada, o palácio do governo, as avós passaram a protestar, corajosamente, uma vez por semana.
As abuelas juntaram suas economias, doações de grupos internacionais e organizações religiosas, e passaram a viajar pelo mundo, repetindo uma pergunta simples aos cientistas: “Nosso sangue pode servir para identificar nossos netos?” Na época, um teste de DNA para identificar uma avó – sem o sangue da geração intermediária – ainda não existia.
Finalmente, enquanto a ditadura ia se desintegrando, as abuelas encontraram alguém capaz de ajudá-las: a geneticista americana Mary-Claire King, que mais tarde se tornaria mundialmente conhecida pela descoberta do gene BRCA1, ligado ao câncer de mama.
Progressista convicta, King havia participado de protestos contra a Guerra do Vietnã e testemunhou os horrores da ditadura militar no Chile, onde lecionou em 1973 num programa de intercâmbio. Junto com colaboradores, King criou uma equação chamada Índice de Avosidade, que permitia às abuelas demonstrar seu vínculo biológico com crianças que elas acreditavam serem seus netos, conta Haley Cohen Gilliland, na edição deste mês da piauí.
Foi a primeira fórmula do tipo e, segundo King, representou “a criação da genealogia genética” – uma ciência cuja aplicação depois se generalizou, tanto nas investigações policiais quanto nas pesquisas de ancestralidade familiar.
Com acesso às análises do DNA, as abuelas passaram a incorporar métodos genéticos ainda mais eficazes. No fim dos anos 1980, King as ajudou a implementar o teste do DNA mitocondrial. Em contraste com o DNA nuclear, que é herdado do pai e da mãe, o DNA mitocondrial é transmitido exclusivamente pela mãe e permanece praticamente inalterado geração após geração. Sendo assim, tornou-se uma ferramenta poderosa para ligar as avós maternas aos seus netos, mesmo na ausência de outros familiares.
Em 1987, as abuelas convenceram o governo da Argentina a criar um local que preservasse seus dados genéticos, para que, mesmo após a morte delas, os netos pudessem ser encontrados. Foi então fundado o Banco Nacional de Dados Genéticos, o primeiro biobanco desse tipo, o mesmo do qual o presidente Javier Milei cortou os subsídios e está agora colocando em risco diretamente como instituição, a pretexto de reduzir o “inchaço burocrático” do Estado.
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