Idoso de costas, mexendo em planta

Crédito, Fátima Kamata/BBC

Legenda da foto, ‘Me senti envergonhado, mas não tive escolha’, diz o brasileiro Yoshio, que precisou recorrer a um programa de assistência social do governo japonês após sofrer acidente
    • Author, Fátima Kamata
    • Role, De Tóquio (Japão) para a BBC News Brasil

Quando Yoshio, um paulista de 80 anos e filho de imigrantes japoneses, precisou deixar o trabalho em uma fábrica no Japão por causa da idade, acreditou que viveria seus últimos anos com tranquilidade. Chegara ao país aos 44 anos e trabalhou por mais de três décadas, até os 75.

Mas tudo mudou depois de um acidente de trânsito.

“Andava de bicicleta quando fui atropelado por um carro. O motorista fugiu. Tive que arcar com tudo”, conta.

Em apenas seis meses, todas as economias de uma vida desapareceram com os custos hospitalares.

Sem familiares por perto e sem acesso à aposentadoria — já que nunca havia contribuído para o sistema de Seguro Social japonês, que inclui seguro de saúde e pensão —, viu-se completamente desamparado.

“Só pensava: o que vai ser da minha vida depois do hospital?”

Foi então que recorreu ao Seikatsu Hogo, um programa de assistência social do governo japonês destinado a pessoas em situação de vulnerabilidade — como idosos sem renda, pessoas com deficiência ou doenças graves.

“Me senti envergonhado, mas não tive escolha.”

Preconceito e desinformação

O Japão envelhece rapidamente e depende cada vez mais de trabalhadores estrangeiros para manter sua economia funcionando. Mesmo assim, a concessão de assistência social a não japoneses continua sendo alvo de xenofobia e desinformação.

Muitos beneficiários estrangeiros evitam entrevistas, com medo de represálias e ataques nas redes sociais — onde circulam acusações infundadas de que “estrangeiros estão abusando do sistema”.

A hostilidade aumentou especialmente durante as eleições para a Câmara Alta do Parlamento, em julho. Diversos candidatos alegaram, de forma falsa, que 33% dos beneficiários do Seikatsu Hogo seriam estrangeiros. A informação viralizou em plataformas como o X (antigo Twitter), alimentando discursos de ódio.

Mas os números oficiais desmentem essa narrativa: segundo o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar do Japão, em 2023 havia cerca de 1,65 milhão de domicílios recebendo o benefício — apenas 2,9% (ou 45.973 famílias) eram de estrangeiros.

Alguns grupos apresentam taxas de dependência mais elevadas por razões históricas e sociais. É o caso dos zainichi, descendentes de coreanos que migraram ao Japão antes da Segunda Guerra Mundial e permaneceram no país.

Muitos envelheceram sem rede de apoio ou acesso à aposentadoria.

Apesar de sua contribuição à sociedade, esses grupos seguem sendo responsabilizados pelos custos crescentes da assistência social, em um país onde mais de 30% da população já tem mais de 65 anos.

“É essencial discutir as questões sociais do Japão com base em dados confiáveis — não em fake news”, afirma o professor Edson Urano, do programa de pós-graduação em Políticas Públicas Internacionais da Universidade de Tsukuba.

“A disseminação de informações distorcidas apenas alimenta a xenofobia, transformando os estrangeiros em bodes expiatórios de décadas de estagnação social e econômica.”

O novo rosto da exclusão

Nos últimos anos, o número de estrangeiros vivendo no Japão ultrapassou 3 milhões, impulsionado por políticas migratórias que atraem mão de obra para setores como construção civil, enfermagem e agricultura.

Os brasileiros, que começaram a chegar em massa nos anos 1990, hoje representam cerca de 5,6% da população estrangeira no país. Muitos se aproximam da aposentadoria, mas grande parte nunca contribuiu para o sistema previdenciário local — o que os deixa fora da rede oficial de proteção social.

O acordo previdenciário entre Brasil e Japão, em vigor desde 2010, permite a soma do tempo de contribuição nos dois países. Mas muitos trabalhadores brasileiros não ingressaram em nenhum dos sistemas, por falta de informação ou orientação.

Outros grupos, como os peruanos, aguardam há anos por um acordo semelhante. Mas mesmo que esse acordo venha, já será tarde demais para casos como o de Antonio, de 78 anos.

Crédito, Fátima Kamata/BBC

Legenda da foto, Antonio e a esposa recebem auxílio financeiro do governo, mas este não acompanha a inflação

“Trabalhei quase 30 anos em fábricas e nunca soube dos meus direitos trabalhistas”, conta.

Ao completar 70, teve que parar.

“Não devo nada a ninguém. Sempre paguei todos os impostos. Só não sabia do Seguro Social”, lamenta.

Ele e a esposa, uma colombiana de 69 anos, conseguiram abrigo no segundo andar de um prédio cedido por uma igreja em Ota, província de Gunma.

Após várias entrevistas, conseguiram se mudar para um imóvel público e receber o Seikatsu Hogo, que gira em torno de 100 mil ienes por mês (equivalente a pouco mais de dois salários mínimos no Brasil). Mas o valor não acompanha a inflação.

“Cortamos tudo o que podemos. Por sorte, ainda temos a comunidade que nos ajuda”, diz a esposa.

A rede de apoio

Crédito, Fátima Kamata/BBC

Legenda da foto, ‘Trabalhamos em fábricas durante a semana, e aos sábados estamos aqui, fazendo o que dá’, diz a voluntária Akimi Inatomi

Uma dessas redes é a NPO Smile Arigato, uma organização que desde 2022 atua como banco de alimentos, atendendo sobretudo estrangeiros na região metropolitana de Tóquio.

Todos os sábados, voluntários distribuem alimentos e produtos de higiene para idosos e mães solteiras em situação de vulnerabilidade. São cerca de 450 famílias atendidas por mês, 70% delas brasileiras.

“Todos são pré-cadastrados. Verificamos se podem receber ajuda, já que alguns municípios proíbem apoio extra ou descontam o valor de quem já recebe o Seikatsu Hogo”, explica Akimi Inatomi, voluntária da organização.

“Trabalhamos em fábricas durante a semana, e aos sábados estamos aqui, fazendo o que dá”, diz a brasileira, enquanto carrega caixas de alimentos no depósito da organização, em Oizumi, província de Gunma.

O conteúdo varia conforme as doações, e é geralmente de produtos secos e às vezes alguns congelados.

Um dilema nacional

Para muitos estrangeiros, o paradoxo é evidente: o Japão os recebe como força de trabalho, mas reluta em integrá-los como parte da sociedade.

“Quando eu trabalhava 12 horas por dia, ninguém reclamava. Agora que estou velho, dizem que estou explorando o país”, desabafa Antonio.

O governador de Shizuoka, Yasutomo Suzuki, defende uma mudança de postura.

“Precisamos reconhecer os estrangeiros não apenas como força de trabalho, mas como membros das comunidades locais.”

Na Assembleia Nacional de Governadores, em julho, Suzuki propôs que o governo central assuma a responsabilidade por políticas de inclusão. Antes de ser governador, ele foi prefeito de Hamamatsu, cidade com a maior população brasileira do Japão, onde implementou políticas para reduzir a evasão escolar entre filhos de imigrantes.

Mesmo assim, a proposta enfrentou resistência. Em poucos dias, o governo de Shizuoka recebeu cerca de 200 e-mails e ligações contra a ideia. Entre os argumentos mais repetidos: “É um absurdo usar impostos para apoiar estrangeiros” e “isso é injusto com os japoneses”.

Enquanto o debate se acirra, histórias como a de Yoshio, Antonio e sua esposa seguem invisíveis. A casa que sonhavam construir para envelhecer com dignidade ficou pelo caminho. Os sonhos que os trouxeram ao Japão há três décadas viraram lembranças.

Hoje, vivem discretamente, com a ajuda da comunidade e da assistência social. Pedem apenas para não serem esquecidos.

*Os nomes dos entrevistados foram alterados a pedido dos mesmos.



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