O brasileiro é familiarizado com a simbologia da Semana Santa. O Domingo de Ramos, a Sexta-feira da Paixão, o Sábado de Aleluia, todos culminando na ressurreição de Cristo no domingo de Páscoa. Só os católicos diligentes, no entanto, costumam lembrar que nessa semana também está inclusa a Terça-feira da Controvérsia. A data marca um dos últimos capítulos da vida de Jesus, quando, confrontado por um fariseu em Jerusalém, o filho de Deus proferiu a famosa frase: “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” Na liturgia da Igreja, trata-se de um momento dedicado à reflexão sobre os conflitos e as provocações da vida.

Talvez por providência divina, foi justamente na Terça-Feira da Controvérsia, em abril deste ano, que o padre José Geraldo da Silva se viu obrigado a prestar contas na Justiça. Era réu em uma ação civil de danos morais, acusado de ter humilhado em público a artista Celina de Pinho Barroso. O motivo: Barroso confeccionou um bonecão inspirado no padre, que não gostou da homenagem e fez estardalhaço em praça pública.

O litígio se arrastou por meses, dividindo as opiniões dos 14 mil habitantes de Sabinópolis, uma cidade mineira do Vale do Rio Doce. Desde que assumiu a paróquia local, em agosto de 2021, José Geraldo causou controvérsias. De temperamento forte, implementou mudanças tão logo pisou na Igreja Matriz de São Sebastião, templo católico erguido em 1820 onde hoje é a praça central da cidade. Primeiro, o padre quis reorganizar as finanças. Preocupado com a arrecadação da igreja, mandou imprimir um cartaz que mostra, didaticamente, as porcentagens que o fiel pode doar de seu salário mínimo. Estão lá a cota mínima, de 1% (14 reais), e a cota máxima, de 10% (141 reais). “Cada um dê conforme determinou em seu coração, não com pesar ou obrigação, pois Deus ama quem dá com alegria”, diz o banner, citando um versículo de Coríntios. A novidade foi vista por alguns moradores como sinal de avareza.

Tempos depois, José Geraldo resolveu centralizar as decisões relativas à Festa de Nossa Senhora do Rosário, a mais importante de Sabinópolis, realizada todo mês de agosto. O evento é uma marca do sincretismo brasileiro: mistura tradições católicas, das religiões de matriz africana e do folclore popular. Em Sabinópolis, o dinheiro arrecadado pela festa (com venda de comidas, bebidas e outros produtos) era gerido, há muitos anos, por uma associação da sociedade civil, que com ele pagava algumas contas. O excedente era doado para a igreja. O padre, no entanto, resolveu destituir a associação e concentrar todos os recursos financeiros na paróquia. Moradores comentam que, nas duas últimas comemorações, ele posicionou fiscais nas barraquinhas para conferir se as vendas seriam condizentes com a arrecadação.

As mudanças, é claro, causaram desentendimentos. A tal ponto que, em março deste ano, dois moradores da cidade enviaram um ofício ao Ministério Público do Estado de Minas pedindo que o órgão interviesse na festa. “O padre José Geraldo, sem explicação e justificativa, destituiu os membros da associação, seus cargos e funções e se apropriou dos bens conquistados pela associação nos últimos 34 anos de existência”, diz o documento. Segundo esses moradores, o pároco também desrespeitou ritos tradicionais da festa e proibiu que a parte “profana” das comemorações – aquela que é bancada pela prefeitura e envolve apresentações musicais de diferentes gêneros – utilizasse a imagem de Nossa Senhora do Rosário nos cartazes de divulgação. Mas o promotor Lucas Nacur Almeida Ricardo arquivou o pedido, afirmando que não é papel do Ministério Público intervir em questões “de natureza interna e litúrgica”.

A situação que já era ruim ficou insustentável em julho, quando foi realizado o Festival de Inverno de Sabinópolis. Na ocasião, segundo testemunhas, José Geraldo mandou retirar uma barraca que arrecadava dinheiro para uma entidade filantrópica, alegando que a estrutura pertencia à igreja. Aqueles que já não gostavam do padre ficaram possessos. Foi quando um dos presentes, Celina Barroso, decidiu: José Geraldo seria transformado em bonecão.

Os bonecões são tradição da Festa de Nossa Senhora do Rosário tanto quanto são no Carnaval de Olinda. A confecção é parecida: uma estrutura de ferro é coberta por vestes de pano, e o rosto é desenhado com fibra de vidro e acabamento de massa corrida (antigamente, usava-se papel machê). Por dentro do bonecão fica uma pessoa, segurando toda a estrutura e balançando de um lado para o outro enquanto corre o desfile. Os bonecões percorrem as ruas de Sabinópolis junto de outros grupos folclóricos, como a caboclada e o bumba-meu-boi. Obedecendo ao roteiro tradicional, eles partem da pequena Igreja do Rosário até a Igreja Matriz de São Sebastião carregando a bandeira de Nossa Senhora do Rosário, que no fim é hasteada.

Desde 1987, a artista e arquiteta Celina Barroso, nascida em Sabinópolis, é responsável por modelar os rostos dos bonecos. Coube a ela, portanto, fazer a caricatura do padre José Geraldo. “Algumas pessoas foram contra, mas estaríamos fugindo da responsabilidade da pauta”, ela diz. “Não foi uma coisa fácil. Mas não decidi sozinha, e disse que não teria nenhuma crítica a ele no bonecão.” Os organizadores da festa se dividiram. Alguns achavam que o boneco poderia parecer uma homenagem ao padre. Outros propunham que a caricatura incluísse chifres e dólares pregados na batina – ideia que Barroso achou prudente ignorar.

Entre gozações e reverências, já desfilaram por Sabinópolis bonecões de famosos como Paulo Gustavo, Rita Lee, Ronaldo Fenômeno e Michael Jackson. Poucos, até hoje, causaram problemas. Barroso conta que, em 1989, o então governador Newton Cardoso (MDB) foi retratado com uniforme de presidiário. Preocupadas com o fato de que, naquele ano, um secretário estadual compareceria à Festa do Rosário, as autoridades sabinopolitanas pediram à polícia que barrasse o bonecão do governador, para não criar constrangimento. Na hora do desfile houve um princípio de confusão, e o bonecão da Xuxa, que nada tinha a ver com aquilo, saiu esfacelado.

O bonecão do padre José Geraldo estava longe de ser tão satírico quanto o de Newton Cardoso. Não havia nenhum adereço explicitamente crítico. O pároco foi representado com uma batina branca e uma estola verde com detalhes dourados, fiel à sua roupa habitual. A confecção foi feita por Barroso em uma oficina aberta, de modo que José Geraldo soube rapidamente do que se tramava. No dia 15 de agosto, véspera da festa, ele se pronunciou durante uma missa. “Dona Celina já foi notificada. Ela está usando a minha imagem, sem a minha autorização, em um boneco que, se sair amanhã, a bandeira não sai de lá. A igreja vai ficar fechada. Me respeitem, não sou palhaço”, esbravejou o pároco, filmado por um dos fiéis. Barroso diz que não recebeu nenhuma notificação, mas, ao ser informada do que o padre dissera, ficou preocupada. Registrou um boletim de ocorrência relatando o ocorrido e afirmou que tinha medo de sofrer uma agressão. No dia seguinte, o boneco saiu às ruas escoltado por policiais (o que não impediu que levasse uma chuva de latinhas de cerveja no caminho).

Quando o padre se deparou com o boneco de si mesmo em praça pública, ficou irado. Paramentado, de pé, na porta da igreja, ele interrompeu a festa, pegou um microfone e prometeu retaliação contra a artista plástica. “Ela vai pagar por isso. Já foi excomungada. É um desrespeito o que acabou de fazer”, disse José Geraldo. A cena foi filmada por alguns moradores e repercutiu no noticiário regional. Tomou dez minutos de uma edição do Boa Tarde Minas, programa da Rede Bandeirantes, no qual o jornalista Eduardo Costa instou o bispo de Guanhães, dom Otacilio Ferreira de Lacerda, a se pronunciar sobre o ocorrido.

Lacerda, que é superior hierárquico de José Geraldo, saiu em defesa do padre. Disse que o termo excomunhão havia sido empregado por ele apenas como “força de expressão” e não tinha qualquer efeito prático. A Paróquia São Sebastião, por sua vez, publicou nas redes sociais uma nota de repúdio contra o que chamou de “atos ofensivos dirigidos ao padre José Geraldo”. O texto, assinado pela “comunidade católica de Sabinópolis”, diz que as ofensas eram “inaceitáveis e causam vergonha aos verdadeiros católicos e às pessoas de bem”.

Criada em família católica, Celina Barroso é ateia e pouco se envolve com a rotina da Igreja. Mesmo assim, conta que sofreu com a inimizade do padre. Por exemplo, foi barrada de tocar violão e cantar no Terço das Mães, um encontro de mulheres que ocorre periodicamente na paróquia. Segundo Barroso, algumas pessoas ainda atravessam a rua quando a veem. “É uma cultura muito conservadora. A religião católica ocupa o Centro da cidade, o espaço histórico principal. O que o padre diz tem muita força.” A artista e arquiteta não descarta que tenha perdido alguns clientes devido às críticas de José Geraldo.

Em 23 de setembro do ano passado, Barroso ingressou com uma ação na Justiça contra o padre, pedindo uma indenização de 28,4 mil reais por danos morais. Seis meses depois, o juiz José Francisco Tudéia Júnior intimou as partes – entre elas a Mitra Diocesana de Guanhães, empregadora de José Geraldo – a comparecer a uma audiência de conciliação no dia 15 de abril, a Terça-feira da Controvérsia. Naquele dia, a artista e o padre se encontraram no Fórum de Sabinópolis. A sessão começou às onze da manhã. Às 14h15, já tinha sido concluída.

Barroso pediu, na ação, que o padre fosse obrigado a se retratar em uma missa e também na próxima Festa do Rosário, em praça pública, “da mesma forma que as ofensas foram proferidas”. O juiz negociou um meio termo: José Geraldo teria de se retratar na missa de Páscoa, mas não precisaria fazer o mesmo na festa. Barroso, por sua vez, só poderia sair novamente com o bonecão se recebesse autorização expressa do padre. E não haveria indenização alguma por danos morais. “O juiz me disse que liberdade de expressão vem com responsabilidade. Mas eu tive responsabilidade. Não deixei que colocassem nada no bonecão, lutei por isso”, ela reclama. No processo, a Mitra Diocesana esclareceu que Barroso “não foi excomungada” e que não há “qualquer penalidade canônica vigente contra a mesma”.

A artista conta que, na audiência de conciliação, terminadas as discussões, ela estendeu a mão para José Geraldo e recebeu de volta um abraço caloroso. O padre não quis conversar com a piauí, nem no dia da audiência nem depois. O bispo de Guanhães também se recusou a comentar. “Não tem mais nada para dizer, está tudo resolvido”, disse José Geraldo ao sair do Fórum, acompanhado de sua advogada. Ambos concordaram em publicar suas retratações também nas redes sociais até o domingo de Páscoa. O padre, ao fazê-lo, explicou seus motivos mas não pediu desculpas propriamente, como determinava o acordo. Inconformada, Barroso disse à piauí que pretende recorrer, por isso, da decisão judicial.

O bonecão, por ora, não voltou a dar as caras.





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