Diné Bikéyah, Utah-Arizona, 9 de abril de 2025
Percorrendo de carro a longa estrada entre os cânions do Norte do Arizona, notei que, de repente, o horário no meu celular havia mudado. Pensei que, talvez, eu tivesse entrado no estado de Utah. Verifiquei o mapa, mas faltavam ainda mais de 100 km para a fronteira.
Só algum tempo depois, já num posto de gasolina cercado pelo silêncio do deserto, descobri que a mudança de horário tinha outra explicação: eu havia entrado no território do povo Navajo, a maior reserva indígena dos Estados Unidos e um espelho da relação conflituosa entre o governo e as minorias que foram massacradas ao longo de séculos.
Aquela nação vivia, ainda que dentro de um país, um outro momento. Tinha seu próprio tempo.
Donald Trump descobriu isso ao tentar se reeleger, em 2020. A nação Navajo – ou Diné, como os indígenas se autodenominam – foi fundamental para derrotá-lo no Arizona. Durante trinta anos, o estado foi dominado pelos republicanos. A última vitória de um democrata havia sido a de Bill Clinton, em 1996. Apesar disso, em 2020 Trump perdeu o estado por uma pequena fração de votos – 10,4 mil, o equivalente a 0,3% do total. Os 67 mil votos do povo Diné dados a Joe Biden foram fundamentais na disputa. E havia um motivo central para esse apoio avassalador dos indígenas ao adversário de Trump: a pandemia.
No dia da eleição, 3 de novembro de 2020, ativistas e famílias inteiras levaram eleitores – alguns, em lombos de cavalos – para votar, no Arizona. Era a resposta que a comunidade navajo queria dar ao abandono que sofreu do governo Trump no primeiro ano da Covid.
Seis meses antes, a taxa de infecção na nação Diné era a maior do país. Vilarejos tinham perdido seus idosos e curandeiros, que carregavam consigo as tradições, os ritos, a medicina alternativa, o idioma e o orgulho de um povo oprimido. Cada perda era lamentada como se a comunidade soubesse que também estavam desaparecendo aqueles que tinham a capacidade de interpretar a indescritível arquitetura do deserto. O coronavírus reabriu o debate sobre a exclusão social dos navajos, alvo de discriminação há séculos num país que, a todo momento, se arvora a dar lições de democracia para o restante do mundo.
No século XIX, a expansão dos Estados Unidos em direção ao Oeste resultou em um genocídio. Com o fim da Guerra Mexicano-Americana e a assinatura do Tratado de Guadalupe Hidalgo em 1848, os americanos se lançaram numa conquista desenfreada por terras e pelo controle daquela porção do continente. Como muitas nações nativas, os navajos estavam no caminho do que os invasores consideravam seu “destino manifesto”.
A operação de limpeza étnica começou com a chamada Longa Caminhada, uma deportação dos indígenas que viviam a Oeste dos territórios do Novo México e do Arizona até Bosque Redondo, a Leste do Novo México. No total, 53 marchas forçadas de 600 km cada ocorreram entre agosto de 1864 e o final de 1866, transferindo cerca de dez mil dinés. Um terço deles não chegou ao destino final, vitimado pela fome e as agruras do trajeto, que passava pelo inóspito deserto do Arizona e do Novo México. O trauma coletivo da Longa Caminhada faz parte, até hoje, da identidade da comunidade navajo.
Os crimes, porém, não terminaram ao final da marcha. Em Bosque Redondo, indígenas de grupos rivais foram colocados para viverem juntos, e conflitos naturalmente eclodiram. O objetivo dos colonizadores era apagar as culturas locais. Os nativos foram proibidos de falar seus idiomas ou realizar seus ritos. Não havia água abundante, e o cultivo da terra fracassava, ano após ano. Cerca de 20% da população daquele campo de confinamento morreu, e Bosque Redondo foi batizado de H’weeldi – “local de sofrimento”, na língua diné.
Depois de algum tempo, o governo americano desistiu desse projeto desumano e assinou, em 1868, um tratado pelo qual os dinés teriam direito a uma reserva com cerca de 14 mil km². A área escolhida fica em uma região tradicional do povo indígena, cercada por quatro montanhas sagradas. Em troca, os navajos se comprometeram a abolir o nomadismo.
Ao longo dos anos, a reserva cresceu graças a outros pactos firmados pelos indígenas com o governo, mas faltava algo no tratado original que jamais foi corrigido. Nele, o governo federal concedia o território, mas não a garantia de água. E, no deserto, a falta de água significa a inviabilização de qualquer projeto de vida. Nos anos seguintes, os dinés se confrontaram com essa realidade de um jeito brutal. Na corrida pela água do Rio Colorado para a extração de ouro e para a expansão agrícola na Califórnia, no fim do século XIX, eles foram o elo mais fraco. A reserva onde agora viviam os primeiros habitantes do Oeste americano foi a última a ser abastecida pela água de um rio que passa aos seus pés. Hoje, uma pessoa no território diné paga 71 vezes mais caro pela água do que o cidadão americano médio. Um terço das casas na reserva não conta com água encanada.
Para os cerca de 220 mil habitantes daquele território ancestral, quando a pandemia chegou, a morte se instalou de vez no deserto.
Em 2020, o povo Diné estava convencido de que, nas urnas, daria a sua resposta a Trump. Que se livraria temporariamente dele. A vitória de Biden, entretanto, não transformou a vida daquela nação, que continuou com os mesmos problemas durante os quatros anos de mandato do democrata. Em 2023, depois de duas décadas de tramitação, a Suprema Corte dos Estados Unidos rejeitou um pedido da liderança diné para que o governo federal firmasse um compromisso de abastecimento de água na reserva indígena. Por cinco votos a quatro, os juízes determinaram que os tratados firmados com os indígenas não obrigavam Washington a fornecer aquele serviço – ao qual, no entanto, todo americano tem direito.
Para alguns, a votação deixou clara a forma desumana como o governo enxerga os navajos há 150 anos. Em um voto dissidente, o juiz Neil Gorsuch relembrou aos pares que o governo realizou, na década de 1860, um programa de “remoção, isolamento e encarceramento” para forçar os nativos a desocuparem as terras, que foram então tomadas por brancos. Milhares de soldados americanos percorreram a região, destruindo o que aparecia pela frente. “Os navajos tentaram de tudo. Eles escreveram para autoridades federais. Eles solicitaram a esta Corte que esclarecesse as responsabilidades dos Estados Unidos ao representá-los. Eles tentaram intervir diretamente em litígios relacionados à água”, escreveu Gorsuch. “Em todas as ocasiões, eles receberam a mesma resposta: ‘Tente novamente.’” (Ironicamente, o Departamento de Recursos Hídricos do Arizona, representante do estado diante da Corte, declarou em um comunicado estar “grato” pela decisão, pois ela não abalaria o gerenciamento do sistema do Rio Colorado.)
A votação da Suprema Corte causou um racha na liderança dos indígenas, e Trump, quando voltou ao poder em 2024, soube se aproveitar disso. Em abril de 2025, já de volta à Casa Branca, o republicano assinou uma ordem executiva desregulamentando a mineração de carvão em terras federais, a pretexto de revitalizar o setor. “Estamos acabando com a guerra de Joe Biden contra o carvão bonito e limpo de uma vez por todas”, disse Trump, ao mesmo tempo que instruiu o Secretário de Energia, Chris Wright, a salvar as usinas de energia a carvão do Arizona. Uma delas está em terras diné, a Noroeste do Novo México, e foi fechada por pressão de ambientalistas.
Assim, de uma vez, Trump conseguiu atacar o movimento ambientalista e sinalizar aos dinés que a viabilidade econômica de sua comunidade depende da venda de energia. Na assinatura do ato, na Casa Branca, estava o presidente da nação Navajo, Buu Nygren. “Juntos, podemos fortalecer as economias locais, gerar receita e criar empregos bem remunerados em áreas historicamente pouco investidas como a nossa”, disse a liderança indígena, em um comunicado à imprensa. Nygren citou o fechamento em 2019 da Navajo Generating Station, na cidade de Page, no Arizona, que custou cerca de 3 mil empregos e 40 milhões de dólares em receita anual. “Nosso foco agora deve ser a preservação de empregos na região de Four Corners e a garantia de que qualquer transição beneficie – em vez de sobrecarregar – nosso povo.” Uma selfie sua com Trump ao final do encontro ficou marcada com um retrato da manipulação feita pelo republicano.
Nygren, porém, não recebeu apoio unânime de seus conterrâneos. O ex-presidente dos navajos, Jonathan Nez, o criticou por incentivar “setores em extinção”. Nez argumentou que a mineração de carvão ameaça a água, o ar e a saúde dos mineiros. “Voltar ao carvão não resolverá nossos problemas – apenas os aprofundará”, ele disse. “A energia produzida pelas usinas de carvão na nação Navajo tem sido historicamente destinada a outros lugares, deixando nossas comunidades no escuro, literal e economicamente”, continuou Nez. “Nosso futuro está na energia renovável, não em nos apegarmos ao passado.”
Para a comunidade, que votou amplamente em Kamala Harris em 2024, o posicionamento de Nygren ao lado de Trump causou constrangimento, inclusive por causa de uma situação inusitada que os indígenas começaram a viver: a de serem confundidos com estrangeiros, no esforço do governo para deportar imigrantes sem documentos. Desde fevereiro de 2025, comunidades indígenas têm alertado seus integrantes para que carreguem sempre consigo uma identificação pessoal comprovando que são cidadãos americanos. Os alertas foram feitos depois que mais de uma dúzia de navajos foram detidos e interrogados durante batidas do serviço de imigração no Arizona e no Novo México. Ao menos quinze casos desse tipo foram registrados, com operações até mesmo em residências e locais de trabalho. Todos foram liberados. Mas o gesto mostrou o desconhecimento das autoridades americanas e, segundo os nativos, a invisibilidade do povo Diné ainda hoje no país.
Essa invisibilidade corre o risco de se ampliar com os cortes promovidos por Trump na administração pública. O impacto tem sido desproporcionalmente maior entre as camadas vulneráveis da sociedade, e os indígenas foram os primeiros a sofrer. Numa audiência recente no Congresso americano, grupos indígenas imploraram aos deputados republicanos e democratas que não permitissem que o governo federal enterrasse o que ainda sobra de cultura indígena nos Estados Unidos. Durante três dias, mais de sessenta grupos nativos relataram suas condições de vida. Um por um, apresentaram dados e testemunhos de como suas populações vivem como cidadãos de segunda classe.
“Os programas tribais não são iniciativas de diversidade”, alertou o presidente da Comunidade Indígena Salt River Pima-Maricopa, Martin Harvier, referindo-se aos esforços de Trump para eliminar todos os programas de diversidade, equidade e inclusão. “Eles são o cumprimento de tratados e obrigações, e não devem estar sujeitos a reduções ou congelamentos arbitrários.” Mesmo o presidente da nação Diné foi obrigado a dizer o óbvio, apesar de sua selfie com Trump. “O país indígena continua lutando com gerações de infraestrutura em ruínas, acesso limitado à assistência médica, aplicação da lei com financiamento insuficiente e uma luta contínua por água limpa”, afirmou Nygren. Segundo ele, quando uma pessoa de sua nação liga para uma ambulância, o tempo de espera até que ela chegue é de, em média, 45 minutos. “É uma questão de vida ou morte”, disse ele.
A vice-presidente do povo Tohono O’odham, Carla Johnson, relatou que apenas 13% das estradas em sua reserva estavam em condições aceitáveis. Essas rodovias, segundo ela, são as únicas rotas pelas quais sua população pode ter acesso a saúde, educação e outros serviços básicos.
Os depoimentos coincidiam com um relato que eu havia escutado, justamente de um dos líderes comunitários do povo Diné. Em sua juventude, ele decidiu se alistar nas Forças Armadas. Foi enviado a alguns dos locais mais distantes do mundo e, antes de cada missão, os comandantes alertavam-no de que ele veria muita miséria. Mas, quando chegava às bases militares, descobria que alguns desses países tinham as mesmas condições de pobreza a que ele e sua família estavam habituados.
De fato, ao percorrer aqueles 1,3 mil km entre Arizona, Utah e Colorado, notei que o deserto não é um território neutro. Ali, o idioma define o parentesco: se colonizador ou resistência. Preciosa para a história dos Estados Unidos, aquela vasta região é uma lição de humildade. Ali vivem pessoas que ainda buscam ter voz num local onde o grito não serve muito e dificilmente se propaga. Enquanto isso, tentam sentir os rios e a terra para sobreviver. Remando no silêncio do Rio Colorado, entre cânions desenhados pelos ventos e por milhares de anos de correntes d’água, fiquei com a impressão de que aquelas rochas inabaláveis nos olhavam com uma mistura de pena e atenção máxima por causa da disputa que está sendo travada entre projetos opostos para o planeta e a civilização.
Capítulo do livro Tomara que você seja deportado: uma viagem pela distopia americana, a ser lançado neste mês pela Editora Nós.