Em setembro de 2018, pouco antes da eleição de Jair Bolsonaro, a piauí publicou um perfil de Paulo Guedes escrito pela repórter Malu Gaspar. O economista, já escalado para o futuro governo, sugeriu que seria capaz de amansar Bolsonaro, de quem o mercado ainda tinha receios devido ao temperamento truculento. “Já é outro animal”, disse o futuro ministro sobre o futuro presidente. Bolsonaro foi eleito e Guedes acabou engolido pela criatura que prometera domesticar. Não foi o único: a Faria Lima, os militares, o Centrão, os tecnocratas – todos se arvoraram à posição de moderadores do presidente, e todos fracassaram. Nesta semana, testemunhamos, enfim, aquilo que parece ser capaz de domar o ex-capitão: o risco de ser preso.

Durante as duas horas em que se sentou na cadeira de interrogado no Supremo Tribunal Federal, Bolsonaro falou à vontade, inclusive sobre assuntos que não tinham relação com a acusação que lhe é feita. Gabou-se de obras e exaltou a qualidade técnica de seu ministério. Falou de Pix e de água para o Nordeste. O relator da ação penal, ministro Alexandre de Moraes, não teria violado nenhum direito do réu se lhe tivesse pedido que se ativesse aos fatos, mas preferiu deixá-lo falar, como fez com os demais acusados. Moraes ainda aceitou, sem polemizar, a brincadeira impertinente de Bolsonaro, que o convidou para ser seu candidato a vice-presidente em 2026 – estratégia que a um só tempo marca sua intenção de se candidatar (ele está inelegível) e sugere que o ministro é, além de juiz, político.

Interrogatórios são importantes na liturgia da justiça penal e no processo de convencimento dos magistrados. Eles materializam a ideia de que todo acusado deve ter “seu dia no tribunal”, no qual possa se explicar diretamente para quem o julgará, apresentando sua versão dos fatos relatados pela acusação. Mas a simbologia desse ato, que põe frente a frente juiz e acusado, faz com que as pessoas, por vezes, o considerem mais determinante do que ele de fato é. É claro que o réu se beneficia de uma performance clara e bem articulada, como a do almirante Almir Garnier Santos, e se prejudica quando tropeça nas respostas, como o general Augusto Heleno. Um interrogatório bem conduzido, que dê ao acusado a chance de se explicar plenamente, legitima o processo. Isso não significa, porém, que seja uma etapa determinante para o desfecho da ação. A não ser que opte confessar o crime, o réu dificilmente será condenado pelo teor do seu interrogatório (e mesmo a confissão deve ser corroborada por outras provas). Tampouco será absolvido apenas com base nesse depoimento. No caso das ações penais contra a trama golpista, o acervo de evidências é vasto e independe do que os réus possam dizer para se justificar.

O saldo dos oito interrogatórios desta semana – os únicos, até agora, a serem televisionados ao vivo nesse processo – foi melhor para a Procuradoria-Geral da República do que para os réus. Os fatos básicos que compõem a acusação foram confirmados pelo conjunto dos depoimentos. Não resta dúvidas de que foram realizados estudos, avaliações, reuniões da cúpula militar e esboços de documentos jurídicos com o intuito de reverter o resultado da eleição presidencial de 2022. Até Bolsonaro confirmou que foram cogitadas medidas de força, como a decretação de estado de defesa e estado de sítio, para garantir a continuidade de seu governo.

As defesas se limitaram a minimizar a participação de seus clientes numa trama cuja existência é cada vez menos contestada. Golpe fracassado é um filho sem pai.

 

Ato principal da chamada “autodefesa”, o interrogatório permite antever a estratégia do acusado para se provar inocente. Bolsonaro, que não tem como negar participação na maioria dos fatos relatados na denúncia, adotou duas estratégias: minimizou a gravidade de suas ações, reduzindo-as a manifestações de sua conhecida verborragia, e tentou reforçar sua convicção de que agia de acordo com a Constituição (o ex-presidente inclusive levou um exemplar dela para a sessão de julgamento, em evidente jogo de cena). Tudo “dentro das quatro linhas”, como costuma dizer.

O Bolsonaro que se apresentou à 1ª Turma do STF na terça-feira (10) era “um outro animal”, diria Guedes. Sereno, respondeu com simpatia às perguntas do ministro a quem, até recentemente, chamava de canalha. Até pediu desculpas pelos ataques de outrora. “Eu tento me controlar. Tenho melhorado bastante, acredito, o meu vocabulário, mas eu acho que com 70 anos é difícil mudar”, disse o ex-presidente.

Ironicamente, a polidez que Bolsonaro demonstrou ao STF depõe contra a tese de que ele é apenas um falastrão, alguém incapaz de controlar o próprio temperamento. A civilidade de sua conduta não apenas no interrogatório, mas ao longo de todo o processo até aqui, prova que ele é plenamente capaz de compreender normas de conduta e segui-las mesmo quando elas mexem com seus brios. Se é capaz de aceitá-las e cumpri-las no figurino de réu, não há porque imaginar que ele seria incapaz de fazê-lo no figurino de presidente, cargo que requer atenção à liturgia.

Mauro Cid, em seu interrogatório, chamou de “conversas de bar” alguns diálogos de teor golpista. Bolsonaro, nas suas explicações, de certa forma pediu desculpas por ter agido como um “presidente de bar” durante os quatro anos de seu mandato, como se isso fosse capaz de imunizá-lo dos deveres inerentes ao cargo, entre os quais estão aceitar o resultado das eleições e trabalhar pela transição pacífica de governo – e jamais elaborar, junto com militares, planos mirabolantes para coagir a Justiça Eleitoral. A figura do “presidente de bar” não existe, a não ser como tergiversação de um réu acuado. Ninguém imagina que, se o golpe tivesse dado certo, Bolsonaro devolveria a presidência a Lula dizendo que tudo fora apenas papo de botequim.

Com a cantilena das “quatro linhas da Constituição”, Bolsonaro tenta dar um verniz de legalidade a medidas inconstitucionais, que ninguém de boa-fé poderia considerar legítimas. Nenhuma leitura possível da Constituição autoriza o uso de medidas de força, com apoio de militares, para reverter o resultado de uma eleição. É um raciocínio que se irmana com a tese do poder de tutela militar sobre a política civil, delírio inspirado em uma leitura mal-intencionada do sempre lembrado artigo 142, e já rechaçada pelo Supremo. É nula a chance de que isso seja aceito como leitura plausível da Constituição por um presidente da República no exercício da função, mesmo em se tratando de um réu declaradamente avesso à intelecção textual.

 

O interrogatório de Bolsonaro parece marcar uma inflexão importante na sua estratégia de poder. Até hoje, o cálculo jurídico sempre foi, para ele, secundário ao cálculo político. Bolsonaro confiava que, vencendo na política, as vitórias jurídicas viriam a reboque ou os reveses jurídicos não o alcançariam. Até a tentativa de golpe, seu mandato presidencial foi um laboratório da tese de que o poder se sobrepõe ao direito. Os crimes de responsabilidade que ele cometeu em série ficaram impunes em razão de um acerto bilionário com o Congresso, nas graças do orçamento secreto. Seus delitos na gestão da pandemia acabaram engavetados por uma PGR, esta sim, amansada. A tentativa de golpe foi o paroxismo dessa estratégia: se tivesse sido bem-sucedido no maior dos crimes políticos, Bolsonaro provavelmente ficaria impune. O poder se afirmaria de novo, e o direito ficaria a ver navios, ou tanques.

Bolsonaro vestiu a fantasia de réu deferente com o intuito de obter benefícios jurídicos, colocando em segundo plano os cálculos políticos. O comportamento dócil e amistoso que adotou na terça-feira (10), submisso à autoridade do STF, não combina com a persona política que engaja o bolsonarismo, movimento que há tempos elegeu o combate à “ditadura da toga” como mote. Ver Bolsonaro enamorado de Moraes é como ver Donald Trump na fronteira, recebendo com buquês de flores os imigrantes ilegais. Resta ver como os eleitores e as lideranças políticas da direita reagirão a esse novo cenário. Radicais da estirpe de Abraham Weintraub e Paulo Figueiredo já foram às redes sociais criticar o ex-presidente pelo interrogatório.

Que benefícios jurídicos Bolsonaro almeja? Como escrevi recentemente na piauí, a não ser que aposte na comoção em torno de sua prisão, imaginando que isso poderia redimi-lo de alguma forma, o ex-presidente provavelmente deposita suas fichas em uma prisão domiciliar. O precedente de Fernando Collor, que obteve esse benefício há poucas semanas, deve inspirá-lo. Trancado em casa, sem direito a protagonizar lives virulentas ou manifestações de rua, sem poder receber aliados ou fazer campanha, e com a ameaça do regime fechado pairando sobre si, Bolsonaro talvez seja finalmente amansado. 

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