A arqueóloga paulista Niéde Guidon ainda morava em Paris quando fez a descoberta que mudou não apenas sua vida como o sertão piauiense e a história da ocupação das Américas pelos humanos. 

Numa série de expedições no começo da década de 1970, ela foi atrás de pinturas rupestres na Serra da Capivara, localizada no Sul do Piauí, sobre as quais tinha sido alertada anos antes pelo prefeito da cidade pernambucana de Petrolina. Com a orientação de moradores da região e o apoio de colaboradores, a cientista descobriu dezenas de sítios arqueológicos espalhados pelo maciço de arenito que domina a paisagem local. Estavam situados no sopé de paredões de pedra ilustrados com uma profusão de pinturas. A arte rupestre documenta a rica fauna que já habitou a área – emas, macacos, peixes, tatus e capivaras. Os desenhos também registram pessoas envolvidas em atividades variadas, ao contrário das pinturas rupestres encontradas na França, em que quase não há  representação humana. 

Guidon dedicou o resto de sua vida àqueles registros. Lutou pela criação de uma unidade de conservação que permitisse proteger o patrimônio natural e cultural da região. A meta foi alcançada em 1979, com a criação do Parque Nacional Serra da Capivara, mas a tarefa estava longe de se esgotar. A arqueóloga entendeu que não conseguiria garantir a manutenção do parque de longe e, em 1992,  se mudou da Europa para São Raimundo Nonato, no Piauí, onde viveu até morrer, no último dia 4 de junho, aos 92 anos.

Na piauí deste mês, Bernardo Esteves revê a trajetória de Guidon e relembra a polêmica em que ela se meteu a partir de 1986. Naquele ano, a pesquisadora publicou na Nature, uma das mais prestigiosas revistas científicas, um artigo relatando uma descoberta surpreendente, intitulado Datas de carbono-14 apontam para o homem nas Américas há 32 mil anos. Essa seria a idade das ferramentas de pedra e restos de fogueira escavados pela equipe da arqueóloga no Boqueirão da Pedra Furada, um dos sítios que Guidon encontrara na Serra da Capivara durante os anos 1970.

  O resultado contrariava uma das certezas inabaláveis dos estudiosos da ocupação das Américas. Eles estavam convictos de que os primeiros habitantes do continente eram o chamado povo de Clóvis, que viveu por volta de 13 mil anos atrás no território onde hoje ficam os Estados Unidos. Os pesquisadores rejeitavam vigorosamente qualquer evidência de presença humana no continente anterior a isso. 

Como os vestígios da passagem do Homo sapiens pelo Boqueirão da Pedra Furada eram apenas indiretos, os críticos alegaram que eles não tinham origem humana. Os supostos restos de fogueira e ferramentas de pedra seriam fruto da ação da natureza. Ou melhor: seriam seixos lascados que caíram da enorme falésia que domina o sítio arqueológico e foram pisoteados por animais e humanos ao longo dos milênios. Em 2003,  Guidon dobrou a aposta e propôs que o sítio piauiense podia ter sido ocupado há cerca de 100 mil anos, data ainda mais impensável para a maioria dos arqueólogos. Nesse período, afinal, o Homo sapiens estava começando a se aventurar fora da África. 

Polêmicas à parte, o fato é que os achados da Serra da Capivara ajudaram a abalar a convicção dos cientistas de que o povo de Clóvis tinha sido o primeiro  a povoar o continente. Essa ideia foi derrubada de vez no fim do século passado, quando os estudiosos aceitaram que o sítio de Monte Verde, no Sul do Chile, havia sido ocupado por volta de 14,6 mil anos atrás   – mais de um milênio antes do povo de Clóvis. Hoje, a maioria dos pesquisadores acredita que os humanos chegaram às Américas há pelo menos 16 mil anos,   mas ainda vê com ceticismo ocupações com mais de 20 mil anos, como é o caso no Piauí. 

Assinantes da revista podem ler a íntegra da reportagem neste link





Source link

Compartilhar.
Exit mobile version