Tardei a assistir a Manas. Falha minha, com certeza, pois, desde que estreou, o filme de Marianna Brennand vem sendo coberto de louros, com toda justiça, e eu poderia estar usufruindo há mais tempo o imenso prazer que tive ao assistir, há pouco, a essa obra cinematográfica de alta qualidade, lançada no circuito brasileiro de cinemas em 15 de maio.
O júri da 21ª Giornate Degli Autori, mostra paralela do Festival de Veneza da qual Manas participou em setembro de 2024, atribuiu o prêmio de Melhor Diretor a Brennand, dentre dez diretores de longas-metragens de ficção (dos quais cinco eram estreantes). A honraria incluiu cerca de 20 mil euros (o equivalente, hoje, a 129 mil reais), a serem divididos igualmente entre a diretora e o distribuidor internacional para promover a circulação do filme. Ao justificar sua decisão, o júri declarou:
Manas conquistou nossos corações ao abordar com cuidado e carinho o tema extremamente sensível e complexo do abuso… Esse filme se destacou na programação por sua confecção magistral, atuações brilhantes e mensagem forte que acreditamos repercutirá em muita gente ao redor do mundo, conscientizando e clamando por mudanças. Agradecemos a Marianna Brennand por tornar essas histórias visíveis e à Giornate degli Autori por dar-lhes um palco.
Além de destacar o “tema extremamente sensível e complexo do abuso” e as “atuações brilhantes” de Manas, o júri deu o valor devido à “sua confecção magistral”, três aspectos de importância equivalente, decisivos para assegurar a excelência do filme.
Premiado em festivais mundo afora, em outubro de 2024, no 26º Festival do Rio, Manas recebeu o Prêmio Especial do Júri da mostra Première Brasil pela atuação da protagonista Jamilli Correa e o prêmio de Melhor Filme Brasileiro na 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Coroando essa marcha triunfal, Brennand recebeu, em 18 de maio, o prêmio Women In Motion Emerging Talent Award 2025. Na ocasião, ela declarou que “esse reconhecimento fortalece meu compromisso com um cinema de impacto, e me enche de fôlego pra seguir criando com coragem, afeto e propósito”.
“Rio Tajapuru, Ilha do Marajó, Pará, Amazônia”
Essa legenda de letras brancas sobre fundo preto dá início a Manas, uma vez decorridos os créditos de abertura. A informação delimita a abrangência do enredo ficcional que é baseado em uma situação concreta vivida na beira do rio e à qual será dado tratamento realista, sem ter sido filmado, no entanto, na Ilha do Marajó por motivos de “logística e segurança”, conforme Brennand esclareceu na piauí.
Após tomar conhecimento, em 2013, de casos de exploração sexual de crianças nas balsas do Rio Tajapuru, o “primeiro ímpeto” de Brennand “como documentarista foi querer fazer um filme de denúncia”:
Ao me aprofundar no assunto, porém, percebi que seria impossível filmar um documentário. Eu jamais poderia colocar diante das câmeras mulheres e crianças que haviam sofrido traumas tão profundos. Pedir a elas que recontassem os abusos seria expô-las a mais uma violência. Percebi, além disso, que a ficção me daria a oportunidade de abordar o assunto com mais profundidade. Meu desejo era fazer um filme contundente, capaz de gerar empatia no espectador e, se possível, alguma transformação.
Em seguida à legenda inicial, o primeiro plano de Manas é deslumbrante, a tal ponto que pode haver o risco de alguém suspeitar que o encanto da imagem vá atenuar o drama que está por vir. Em contrapartida, um espectador mais cético pode duvidar se será possível manter o alto padrão da fotografia até o fim, assegurando a unidade visual do filme. É inegável, porém, que tanto a violência do conflito quanto a beleza dos planos mantêm o alto nível, sem esmorecer sequer por um instante – palmas, portanto, em especial para Pierre de Kerchove, diretor de fotografia e câmera; Marcos Pedroso, diretor de arte; Kika Lopes, figurino; e Luiz Gaia, caracterização. Além deles, seria preciso nomear, por uma questão de justiça, pelo menos os autores do roteiro e demais integrantes da equipe que contribuíram de maneira direta para o resultado geral obtido. Seria uma lista longa demais, no entanto. Fiquemos, pois, apenas com os já citados, sem demérito aos demais.*
Entre tantas excelências, em especial a do elenco de jovens atrizes não profissionais, há poucos aspectos menos maravilhosos a comentar. Em especial, Aretha (Dira Paes), policial que mais parece um anjo; a ligeira demora de Marcielle (Jamilli Correa) para começar a reagir a Marcílio, seu pai (Rômulo Braga); e o desfecho, nos cinco a seis minutos finais, que me pareceu meio abrupto, além de demasiado sumário, em forte contraste com o envolvente ritmo largo da primeira metade do filme.
Se o primeiro plano de Manas é deslumbrante, o último é comovente, na justa medida.
Lamentável, porém, mas previsível dada a configuração do mercado exibidor, voltada para entretenimento corriqueiro quando não apenas banal, é o fato de Manas, no terceiro fim de semana em cartaz, de 29 de maio e 1 de junho, ter sido visto por apenas 1772 pessoas, com média de público de 61 por cinema em que foi exibido. Incluindo as duas semanas anteriores, de 15 a 28 de maio, chegou ao totoal de 11.748 espectadores. (Dados do portal Filme B)
* João Moreira Salles, fundador da piauí, é sócio da Videofilmes, produtora associada de Manas. Seu irmão, Walter Salles, e Maria Carlota Bruno, também produtores associados do filme, são respectivamente sócio e diretora executiva da Videofilmes.