Trabalhar na Polícia Federal é, de tempos em tempos, bater na porta da casa de investigados e dar de cara com carros de luxo, muitas vezes comprados com dinheiro de origem duvidosa. Pode-se contar a história do Mensalão por meio do Land Rover que Silvio Pereira, então secretário-geral do PT, recebeu de um empresário com negócios no governo. Nos anos de Lava Jato, então, os exemplos foram muito mais numerosos e exuberantes: além da Lamborghini branca que Eike Batista mantinha na sala de estar da própria casa, o noticiário foi tomado por uma profusão de Ferraris, Porsches, Camaros – e, novamente, um Land Rover, doado pelo doleiro Alberto Yousseff ao dirigente da Petrobras Paulo Roberto Costa.
Não foi com surpresa, portanto, que um grupo de policiais federais se deparou com a reluzente Ferrari SF90 Stradale do advogado Nelson Wilians, ao cumprir um mandado de busca e apreensão em sua mansão, na semana passada. A surpresa veio depois: ao tentar confiscar o carro, como fizeram com as obras de arte e itens de luxo que encontraram, os policiais foram informados de que isso não seria possível. O motivo, até onde se sabe, é inédito na longa história das apreensões automobilísticas da PF: o carro, além de funcionar à combustão, tem três motores elétricos e por isso não pode ficar muito tempo longe da estação de recarga de energia, que é feita sob medida para ele e fica instalada na casa. Os policiais consultaram empresas especializadas e concluíram que, se a Ferrari ficasse muito tempo sem carga, seu sistema elétrico poderia sofrer danos irreversíveis.
Isso não impediria, em tese, que o carro fosse deslocado de um lugar a outro, já que ele dispõe de motor à gasolina. Mas poderia estragar sua bateria, que demanda recargas periódicas, e acarretar problemas mecânicos. Como visitar a mansão de Wilians para reenergizar a Ferrari não é uma opção viável a médio prazo, os policiais, para não correrem o risco, acharam mais prudente deixar o veículo onde estava. A piauí pediu à PF uma explicação mais detalhada do episódio, mas a corporação respondeu, como de praxe, que não comenta investigações em andamento.
Nelson Wilians é dono de um dos maiores escritórios do país e figura influente nos círculos do poder. Pela riqueza que esbanja nas redes sociais, é conhecido pelo epíteto “advogado-ostentação”. A visita da PF à sua casa, no dia 12 de setembro, foi parte de uma nova fase da Operação Sem Desconto, que investiga o escândalo de desvios milionários no INSS. A polícia suspeita que Wilians seja sócio oculto e tenha lavado dinheiro de Maurício Camisotti, empresário que controla três associações implicadas nas fraudes contra os aposentados: Ambec, Cebap e Unsbras.
A investigação rastreou transações financeiras entre Wilians e Camisotti que somaram ao menos 28 milhões de reais. Os policiais trabalham com a hipótese de que o esquema ajudou a enriquecer ainda mais o advogado – e, por isso, confiscaram os objetos luxuosos que povoavam sua casa. Fizeram o mesmo com Fernando dos Santos Andrade Cavalcanti, seu parceiro de negócios, que também foi alvo da operação da semana passada. Com Cavalcanti, os policiais encontraram uma Ferrari vermelha de um modelo convencional, que não precisa de recarga elétrica e foi apreendida.
A Ferrari de Wilians é um caso à parte. Primeiro modelo híbrido plugin produzido pela montadora italiana, combina um motor V8 a combustão com três motores elétricos que resultam em cerca de mil cavalos de potência. Vai de zero a 100 km/h em 2,5 segundos e atinge a impressionante velocidade de 340 km por hora – atributo que dificilmente pode ser testado no trânsito de São Paulo, onde Wilians vive. Quando está no modo exclusivamente elétrico, porém, o veículo tem um desempenho modesto: é capaz de percorrer somente 25 km. Depois disso, precisa que a bateria seja recarregada. Costuma ser vendido por cerca de 5 milhões de reais, mas, segundo os investigadores, o exemplar de Wilians é mais valioso, por ser equipado com alguns itens adicionais e cor personalizada (um brilhante amarelo).
Como a apreensão da polícia foi frustrada, a Ferrari permanece estacionada na mansão de Wilians, no bairro Jardim Europa. Apesar do mandado de busca e apreensão, o advogado não perdeu a propriedade do carro. Em vez disso, foi nomeado seu “depositário fiel”, o que significa que, por ora, não pode vendê-lo ou transferí-lo para outra pessoa, mas pode continuar a usá-lo como desejar. O mesmo não se pode dizer do Bentley e do Rolls Royce que a polícia também encontrou na sua casa e que, agora, estão sob guarda da Justiça.
Wilians nega os crimes que lhe são imputados. À piauí, disse que atualmente tem vínculo “zero” com Cavalcanti, a quem se refere como ex-sócio e ex-vice presidente de seu escritório. Mas os documentos contam uma história diferente. Na Junta Comercial de São Paulo, a FC Participações, empresa de Cavalcanti, ainda consta como sócia em negócios de Wilians. Detém 20% do capital social da NW Group, empresa controlada pelo advogado e batizada com as siglas de seu nome. Além disso, Cavalcanti figura como administrador da NW Soluções e Recuperação de Crédito, mais um dos braços empresariais de Wilians, e continua sendo sócio de grifes como a Armory e a Yukio, juntamente com o advogado.
Confrontado com esses fatos, Wilians explicou nos seguintes termos sua relação com Cavalcanti: “Não somos mais sócios de fato. O que ainda existe é apenas a etapa burocrática de formalização da desvinculação societária, que está em andamento.” Cavalcanti também foi procurado pela piauí, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem.
Essas aparentes contradições foram discutidas na CPMI do INSS, à qual Wilians depôs nessa quinta-feira (18), em Brasília. A deputada Adriana Ventura (Novo-SP) perguntou se o advogado mantinha uma relação profissional ou também pessoal com Cavalcanti. Marcel Van Hattem (Novo-RS), por sua vez, constatou que os dois ainda são sócios e perguntou se Wilians reconhecia esse fato. “Sim ou não?”, repetiu o parlamentar. Wilians não disse nem que sim nem que não. Exerceu o direito de ficar em silêncio do começo ao fim da sessão.
As investigações ainda estão em curso, e Wilians, por ora, não foi indiciado. A PF diz que ele dispõe de uma outra Ferrari e duas Mercedes-Benz localizadas em Brasília e registradas no nome de uma empresa de Cavalcanti. Segundo a investigação, os três carros foram escondidos no estacionamento de um shopping na véspera da primeira fase da Operação Sem Desconto, em abril. Se confirmada, essa informação pode resultar numa acusação por ocultação de patrimônio, complicando ainda mais a vida do advogado.