A presença de Ana Maria Gonçalves fez lotar, nesta quinta-feira (31), a Esquina piauí + Netflix, na 23ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Autora de Um defeito de cor – clássico da literatura brasileira sobre a escravidão –, a escritora se tornou recentemente a primeira mulher negra eleita para a Academia Brasileira de Letras (ABL). Em uma conversa com o editor da piauí Armando Antenore e com a editora da Record Livia Vianna, Gonçalves leu um trecho do novo livro que está escrevendo, ainda sem título. A obra é um relato pessoal sobre o envelhecimento e a menopausa. No trecho, inédito, a escritora trata daquilo que descreve como o “calorão”. Leia abaixo:
“Todo chefe de cozinha tem um piromaníaco dentro de si.” Desde que eu ouvi essa frase de um chefe de cozinha haitiano (vou voltar a falar dele depois), não consigo deixar de pensar no quanto isso também é verdade para a grande maioria das mulheres na peri ou na pós-menopausa. Temos uma pequena piromaníaca dentro de nós. E como sei que lidamos melhor com o que podemos nomear, passei a chamar a minha piromaníaca de Contita, o mesmo nome da minha amiga imaginária da infância. Contita é bastante ativa, imprevisível e geniosa, como eu já deveria saber – e vingativa, como eu não tinha ideia, talvez por eu tê-la substituído por tantas outras personagens com quem converso e convivo desde que comecei a escrever.
Apesar do longo tempo que se passou sem nos falarmos, sei que Contita ainda mora na minha cabeça, vizinha do local onde as ondas de calor são produzidas em reclamação à queda do nível de estrogênio, confundindo o hipotálamo, que funciona como o termostato do corpo. De posse dessa informação, Contita promove um inferno na minha vida. Sei que não está lá, mas costumo imaginá-la sentada em alguma cavidade bem no meio do peito, onde, sem dó nem piedade, brinca com fogo. A qualquer variação brusca de temperatura externa, situações que me deixam nervosa ou apreensiva, momentos de ansiedade, luzes muito fortes, ambientes muito quentes, ou mesmo na ausência de tudo isso, e apenas porque pode, Contita acende a fogueira.
Do meio do peito sobe um bafo quente e poderoso que só se dissipa depois de aquecer, avermelhar e molhar o meu rosto, empapar de suor o pescoço e o couro cabeludo, fazendo com que eu me desconcerte completamente no meio do que estiver fazendo. Isso quando é durante o dia. À noite é pior. E durante pelo menos dois minutos não há absolutamente nada que eu possa fazer. Contita não se vende por gelo, ar-condicionado, mergulhos de cabeça dentro do freezer.
Ela tem o tempo dela, e eu que espere, enquanto tento manter a dignidade e o fio de raciocínio que me resta para funcionar minimamente quando sou pega no meio de um encontro com o chefe de cozinha haitiano, de uma conversa ou de uma palestra.