No dia 13 de junho, duzentos aviões de combate israelenses cruzaram o céu do Irã, bombardeando instalações nucleares e dando início a uma série de ataques que mataram dezenas de civis e militares. O mundo foi pego de surpresa. O Irã, afinal, não estava em guerra e, além de tudo, vinha tentando negociar com os Estados Unidos um novo acordo de paz nuclear. Benjamin Netanyahu chamou o bombardeio de “ataque preventivo contra o programa nuclear do Irã” – embora não haja comprovação de que os iranianos estivessem enriquecendo urânio com o objetivo de desenvolver uma bomba atômica. Na semana seguinte, Donald Trump se viu forçado a entrar no conflito. Com mais de uma centena de aviões, ordenou ataques a três instalações nucleares iranianas, entre elas a usina de enriquecimento de urânio de Fordow, localizada a 90 metros abaixo do solo.
A agressão não deflagrou, por ora, a Terceira Guerra Mundial, como alguns temiam. Mas, na visão de analistas e diplomatas, ela parece ter aberto um novo momento da geopolítica mundial. O bombardeio ao Irã foi um alerta de que, hoje, todos os países estão vulneráveis a ataques semelhantes. Leis internacionais foram violadas por Israel e Estados Unidos, contribuindo para o descrédito dos organismos internacionais que deveriam aplicá-las, como a ONU e a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
“Esse ataque estabeleceu que, a partir de agora, passa a imperar a lei do mais forte. Não existe mais razão para a existência dos organismos internacionais, ou do Tratado de Não Proliferação Nuclear”, diz o embaixador aposentado José Maurício Bustani, de 80 anos. “Donald Trump violou, de uma só tacada, a Constituição americana e a Convenção de Genebra para sustentar as guerras do Netanyahu. E o pior é que a Europa os apoia.”
Bustani acompanha, desde 2002, o lento desmantelamento das leis internacionais que organizaram o mundo no pós-Segunda Guerra. Naquele ano, o embaixador foi forçado a deixar o cargo de diretor-geral da Agência de Proibição de Armas Químicas (Opaq) porque resistiu ao discurso do governo americano de que o Iraque possuía armas químicas. A Opaq, àquela altura, já fora avisada por serviços secretos de que essas armas não existiam, e vinha negociando com o Iraque uma autorização para que fossem feitas inspeções no país. O objetivo era apaziguar os ânimos no Oriente Médio e evitar uma guerra. Mas a posição americana prevaleceu.
Netanyahu, que em 2002 não ocupava nenhum cargo oficial no governo israelense, foi a Washington fazer campanha em favor da invasão ao Iraque. Em um discurso no Congresso americano, garantiu aos parlamentares que Saddam Hussein possuía, sim, armas de destruição em massa e que depô-lo era a única forma de garantir a paz na região. Assim foi feito. No dia 20 de março de 2003, o Exército americano entrou no Iraque, deflagrando um conflito que se arrastou por oito anos. Hussein foi derrubado, nenhuma arma química foi encontrada e um milhão de iraquianos foram mortos, segundo estimativa do instituto Opinion Research Business (ORB). A queda do regime mergulhou o país numa onda de violência que dura até hoje, com facções extremistas disputando o poder. Os Estados Unidos nunca se desculparam pela tragédia. O então primeiro-ministro britânico, Tony Blair, que aderiu ao conflito, reconhece que esse foi o maior erro de sua carreira.
Duas décadas se passaram, e um discurso semelhante agora paira sobre o Irã. O ataque de Israel e Estados Unidos foi condenado, mas não contido pela ONU. “É um retrocesso gigantesco na história das relações internacionais”, diz Bustani. “Depois do bombardeio, Trump decidiu, na base do soco na mesa, que haverá paz entre Irã e Israel. Então é assim que vai ser a partir de agora? Vai ser tudo decidido na base da força bruta? Se for, então o Brasil está tremendamente vulnerável, porque não tem poderio militar para se defender.”
Bustani lembra que, mais de uma vez, o governo americano insinuou que havia integrantes do Hezbollah escondidos no Brasil. A insinuação se deve ao fato de que, no Sul do país, na Tríplice Fronteira com Argentina e Paraguai, há uma grande concentração de imigrantes libaneses e seus descendentes. “Isso até levou o Brasil a admitir um escritório americano lá”, diz Bustani. “Com base nessas acusações não comprovadas, o Brasil representaria um risco para os Estados Unidos? Poderemos ser atacados por isso.”
Em dezembro de 1953, na Assembleia Geral da ONU, o então presidente americano Dwight Eisenhower proferiu o célebre discurso “Átomos pela paz”. Foi o gesto inicial de um movimento da diplomacia americana para conter a escalada nuclear na Guerra Fria. Quatro anos depois, como resultado desse esforço, foi criada a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Os países que já faziam parte da ONU foram convencidos a entrar para a nova agência com a garantia de que não seriam impedidos de desenvolver reatores e outras tecnologias nucleares, contanto que tivessem fins pacíficos. Em contrapartida, tinham de permitir inspeções in loco, conduzidas pela AIEA, para verificar se não estavam desenvolvendo um arsenal bélico. A proibição de criar bombas atômicas só não se aplicava aos países que já as possuíam – Estados Unidos, França, Reino Unido, União Soviética e China.
A AIEA é sediada em Viena, na Áustria, e é composta por 180 Estados-membros, entre eles o Irã. Acusado por Israel de desenvolver bombas na surdina, o país estava sob inspeção permanente da agência, que não encontrou provas da acusação. Esse é um dos motivos pelos quais o presidente da AIEA, o argentino Rafael Mariano Grossi, no cargo desde 2019, está sendo duramente criticado pelo governo iraniano. Embora não tenha divulgado nenhuma prova, Grossi afirmou, em declarações à imprensa internacional, que alguns serviços secretos suspeitavam que o Irã estava mesmo processando urânio para produzir armas de destruição em massa. A insinuação serviu como um dos pretextos para que Israel e Estados Unidos bombardeassem o país.
Bustani concorda com as críticas a Grossi. “Ele jamais poderia utilizar os dados dos serviços secretos, que muitas vezes são movidos por interesses de seus países, para acusar o Irã. Se houvesse essa desconfiança, ele teria que ter mandado os inspetores fazer uma verificação surpresa, o que não ocorreu.” O episódio, na visão do ex-diplomata brasileiro, serviu para descredibilizar a agência e foi um tiro que saiu pela culatra. “Ora, se o seu país cumpre todas as regras e é bombardeado, de que vale fazer parte da AIEA? A Coréia do Norte saiu da agência, fez a bomba atômica e está imune a agressões desse tipo. Então a mensagem embutida é de que o país que não possui arma nuclear está sujeito a ser atacado. Dessa forma, acabou se criando, na verdade, um estímulo para a fabricação dessas armas.”
O programa nuclear iraniano data do final dos anos 1950, quando o país ainda era uma monarquia. A iniciativa recebeu apoio dos Estados Unidos justamente como parte da campanha “Átomos pela paz”, por meio da qual os americanos tentavam se projetar como uma liderança mundial em assuntos nucleares. Desde então, os iranianos aprimoraram muito seus reatores e suas usinas de enriquecimento de urânio, sempre declarando usá-los exclusivamente na produção de energia.
As primeiras suspeitas de que poderia haver algo além disso surgiram no começo dos anos 2000, levantadas pela própria AIEA. Na época, o Irã, que até então enriquecia o urânio a um grau de pureza de 4%, passou a obter percentuais maiores. Em 2010, anunciou que chegaria aos 20% de pureza, fato que levou os Estados Unidos a imporem sanções ao país de forma unilateral – isto é, sem anuência da ONU. O Irã foi banido do comércio internacional e das operações financeiras internacionais. Em 2015, estrangulado por essas medidas, o país assinou o Plano de Ação Conjunto Global, no qual aceitou restrições ao seu programa nuclear e permitiu que inspetores da AIEA o monitorassem.
Mais tarde, o governo de Barack Obama atenuou as sanções, exigindo em contrapartida que o Irã se limitasse a enriquecer o urânio no percentual então existente. Em 2018, no entanto, Trump decidiu que os Estados Unidos sairiam do tratado nuclear e endureceu novamente as sanções. Como consequência, o regime de Ali Khamenei passou a enriquecer o urânio a um grau de pureza de 60%. O percentual, de todo modo, ainda está aquém dos 90% necessários para a fabricação de uma bomba atômica. (Até hoje, devido às sanções impostas pelos Estados Unidos, os únicos bens que o governo iraniano pode importar são remédios e alimentos. O Brasil é um grande exportador de carne para o país).
O Irã alega que precisa das usinas nucleares para gerar energia. O petróleo produzido no país não é uma opção atrativa, porque exige a construção de usinas a gás, muito mais caras e poluentes do que as usinas nucleares. Uma série de países, além do Irã, adota a tecnologia atômica como matriz energética. Os Estados Unidos têm 94 usinas nucleares. A China e a França, país cuja única fonte de energia é a nuclear, têm 57 cada. O Brasil tem duas.
Os analistas agora especulam como o Irã vai se posicionar nesse novo cenário. A reação imediata do país foi anunciar sua retirada da AIEA, o que significa o fim das inspeções conduzidas pela agência. Não se sabe o que será feito do seu programa nuclear daqui para frente. Segundo informações do governo americano divulgadas pelo The New York Times, os bombardeios não destruíram completamente a capacidade de produção nuclear do país. Há poucos dias, as autoridades iranianas afirmaram que todo o material radioativo havia sido retirado das usinas antes dos ataques. Presume-se que é verdade: se isso não tivesse sido feito, o risco de um vazamento tóxico teria sido enorme. Poderia afetar, além do próprio Irã, países vizinhos como a Turquia, que é membro da Otan, e a Arábia Saudita, aliada dos americanos.
Por ora, a paz entre Israel e Irã, que Trump decretou na base do grito, parece longe de acontecer. Ray McGovern, um renomado ex-oficial da CIA, foi ferino ao analisar o comportamento do presidente americano, que oscilou entre defender um cessar-fogo imediato e a derrubada do governo iraniano. “O Trump é a própria personificação da imprevisibilidade”, disse McGovern, em entrevista recente ao jornalista norueguês Glenn Diesen. Na avaliação do ex-oficial, o presidente não levou adiante os planos de derrubar o regime de Ali Khamenei porque sabe que teria de se ver com China e Rússia.
McGovern ponderou que Vladimir Putin, ao se encontrar recentemente com o ministro das Relações Exteriores do Irã, Abbas Araqchi, provavelmente alinhou uma estratégia de confrontação aos Estados Unidos. “Eles certamente consultaram os chineses e deram um ultimato ao Trump: ‘Este é o novo mundo. Esqueça fazer alguma coisa a mais’.” O fato é que, após o encontro, o presidente americano decretou a paz entre os dois países. McGovern defende que as grandes potências, inclusive os Estados Unidos, deem um basta em Netanyahu.
Até o momento, Reino Unido, França e Alemanha não parecem dispostos a agir contra o premiê israelense, e muito menos a pacificar o Oriente Médio. A abertura da reunião da Otan, no dia 24 de junho, em Haia, na Holanda, demonstrou que as potências europeias apoiam a escalada belicista. Em seu discurso, o novo secretário-geral, o holandês Mark Rutte, propôs que os 32 países membros da Otan aumentassem seus gastos com defesa, de modo que eles totalizassem ao menos 5% de seus PIBs. A proposta foi aprovada e deverá ser implementada gradualmente até 2035. A Espanha foi o único país a votar contra.
O redirecionamento de verbas para a Defesa deve abalar ainda mais o sistema social europeu, já muito sobrecarregado, mas Mark Rutte pareceu não se preocupar com isso. À imprensa, afirmou que os impostos dos americanos não podem ser usados para bancar os gastos com segurança dos europeus. Além disso, defendeu o ataque ao Irã e, numa provocação à Rússia, disse que a adesão da Ucrânia à Otan é um processo irreversível. (Mais tarde, numa demonstração de submissão, Rutte enviou um e-mail a Trump transbordando elogios: “Donald Trump, você tem nos conduzido para um importante momento para a Europa e os Estados Unidos. Você conseguirá agora o que nenhum presidente conseguiu fazer. A Europa vai pagar uma GRANDE quantia, como deveria, e isso vai confirmar a sua vontade.” Trump publicou o e-mail em sua rede, a Truth Social).
“O que eles querem? Rearmar a Europa inteira para atacar a Rússia? Acham que a Rússia vai invadir a França, a Alemanha, a Inglaterra? Não tem sentido essa maluquice”, diz José Maurício Bustani, demonstrando espanto. Para o embaixador, o comportamento do secretário-geral da Otan é mais uma prova de que entramos numa nova quadra da história. Esperava-se que ao menos os Brics se manifestassem enfaticamente contra o ataque dos Estados Unidos ao Irã, que desde o ano passado é integrante do bloco. Nem isso aconteceu. A organização só se manifestou dois dias depois do bombardeio, com uma nota moderada.
A posição pública da China tem sido sóbria. A Rússia, em razão da guerra contra a Ucrânia, também manteve a discrição. A Índia não se manifesta. O Brasil tem evitado ataques contundentes a Israel para não comprar briga com sua própria extrema direita. A Europa, enquanto isso, perdeu não só prestígio, força e protagonismo, como também sua autoridade moral. “O mundo não está mais se importando com o que os europeus dizem. Os Estados Unidos, a Rússia, e a China não se importam. Nem mesmo o Irã”, disse McGovern, na mesma entrevista.
Os Estados Unidos continuam incitando conflitos, e a Rússia não vai parar a guerra na Ucrânia se a Otan não desistir de colocar bases no país. A Alemanha, por sua vez, fez um acordo em separado com os americanos para instalar mais duas bases militares em seu território. O objetivo, em tese, é se precaver contra um eventual ataque russo. O mundo está se armando. Com os organismos internacionais totalmente escanteados, a lógica da nova ordem global poderá ser a da guerra sem fim.