Forjado em redações convencionais, o experiente jornalista Paulo de Tarso, 65 anos, torcia o nariz para ferramentas generativas de inteligência artificial (IA) – aquelas capazes de criar conteúdos a partir de alguns comandos textuais, e que começaram a se disseminar no Brasil em 2023. Em março do ano passado, ele venceu sua resistência pessoal. Sentou-se na redação improvisada em sua casa, em Alegrete, no sudoeste gaúcho, acessou pela primeira vez o Copilot, assistente de IA da Microsoft parecido com o ChatGPT, e encomendou à máquina alguns textos. “No início, fiquei apavorado, porque é uma coisa assustadora”, conta. “Mas depois entendi a lógica de funcionamento.”
Tarso é repórter, editor, revisor, checador, social media e dono do jornal Em Questão, um trissemanário que circula há mais de vinte anos (primeiro em versão impressa, restrita ao município gaúcho de Alegrete e vizinhanças, e desde 2022 apenas em versão digital). No início de 2020, a redação chegou a contar com sete repórteres, cobrindo sobretudo o noticiário local, mas todos foram demitidos na pandemia. Na época, o jornal, que se sustenta basicamente com anúncios (sejam diretos ou de Google Ads, a plataforma por meio da qual a big tech comercializa publicidade para sites parceiros), viu sua receita despencar. Com a diminuição da força de trabalho, diminuiu também o volume de reportagens. Tarso passou a fazer tudo sozinho, com exceção da diagramação, que delegou a um freelancer. O jornalista relata que foi ficando sobrecarregado. Trabalhava do começo da manhã até o fim da noite, e, a certa altura, se viu à beira de um colapso nervoso. Até que conheceu a IA – e teve a percepção de que ganhou a força de trabalho daquelas pessoas que já não estavam mais presentes.
Aquele primeiro flerte com o Copilot foi um caminho sem volta. Tarso passou a usar ferramentas de inteligência artificial em quase todas as etapas de produção do Em Questão. Se ele cola um release enviado por uma assessoria de imprensa, em segundos o texto é reescrito em forma de reportagem, sem que um repórter precise redigir algo de fato. Tarso, que antes mal tinha tempo para respirar, hoje leva cerca de três horas para fechar cada edição do jornal, que costuma ter 25 textos distribuídos em 22 páginas. Como mágica. O material é diagramado – por um ser humano, o último deles – em formato pageflip, que dá ao leitor a experiência de folhear digitalmente o jornal.
Entusiasmado, Tarso incluiu outros três sistemas além do Copilot em sua rotina de trabalho: o ChatGPT (da Open AI), o Gemini (do Google) e o 11JAI (da OnzeNews, uma empresa brasileira). A orgia tecnológica lhe permite aproveitar o melhor de cada plataforma. Funciona, além disso, como uma forma de precaução: Tarso diz ter entendido que não pode confiar cegamente naquilo que um único sistema de IA lhe diz. Mas ele delega para as máquinas a solução desse problema: reunindo várias plataformas, consegue fazer um tipo de acareação. Quando as respostas são insatisfatórias, Tarso pede complementos.
“Vou lapidando. Encaro como se tivesse um repórter na minha frente e eu fosse perguntando pra ele. Dialogo, refino, descarto o que não quero.” Como utiliza seus próprios critérios para fazer eventuais cortes, ele não vê problema em assinar o texto final com seu nome. A cada edição do jornal, uma boa fração de reportagens são feitas integralmente por IA, a partir da reciclagem de textos disponíveis na internet. Na edição de 19 de agosto, por exemplo, todas as 21 matérias e oito notas foram elaboradas dessa forma. Nada ali foi apurado diretamente pelo jornal, que apenas reaproveitou informações de terceiros. Apesar disso, uma parcela menor dos textos ainda conta com algum insumo humano – com informações que Tarso apurou e colou separadamente nas plataformas de IA, obtendo delas um texto estruturado.
Um exemplo desses artigos biônicos: na edição de 24 de junho, o Em Questão publicou um texto intitulado Projeto leva o debate do bullying para dentro da sala de aula. Quem cantou a pauta para Tarso foi uma professora com quem ele esbarrou um dia qualquer no supermercado. A educadora comentou, despretensiosamente, que vinha promovendo palestras sobre bullying nas escolas de Alegrete. Interessado no assunto, Tarso pediu que ela lhe enviasse uma mensagem por WhatsApp detalhando a iniciativa. A professora topou e listou, em tópicos, as estratégias que usa para discutir o bullying com a criançada, os órgãos públicos envolvidos no projeto e os nomes dos palestrantes convidados.
O jornalista, ao chegar em casa, abriu o Gemini no computador, colou as mensagens da professora e digitou um comando simples para a máquina: “Escreva um texto informativo baseado nas informações acima.” A resposta da inteligência artificial serviu como ponto de partida – um “rascunhão”, segundo Tarso. O título sugerido era bastante genérico: Estratégias para um ambiente mais seguro. O texto não veio muito melhor. Tarso então recorreu à 11JAI em busca de maior refinamento jornalístico. Obteve um texto novo, dessa vez com cara de jornal, e três sugestões mais plausíveis de título. Satisfeito, editou as primeiras frases e deu a obra por encerrada. Para coroar, pediu ao Copilot um infográfico que resumisse o assunto. O pedido foi atendido, mas veio com alguns erros de acentuação que o jornalista não viu necessidade de corrigir.
“As IAs foram me amansando”, reconhece Tarso. “Eu fui domado.” Os seus gatos, Pedrita e John Wayne, herdaram o tempo que era dedicado à apuração, checagem de fatos e revisão de texto.
O 11JAI não funciona em formato de chat, como o Gemini e o ChatGPT. Em vez disso, apresenta um formulário que o jornalista deve preencher com os fatos básicos de sua apuração, incluindo trechos de entrevistas. Alimentada, a plataforma demora menos de um minuto para redigir um texto. Faz ainda o papel de editor, sugerindo opções de título e subtítulo. Cada notícia gerada custa 8 reais e 45 centavos, mas o 11JAI também tem planos mensais, em que o valor unitário fica menor. Clientes premium (que pagam mais) podem personalizar a notícia segundo um determinado manual de redação e um estilo editorial.
Há recursos no 11JAI que permitem gerar reportagens a partir de um esforço perto de zero. Um deles agrega as notícias mais recentes publicadas por outros veículos. A notícia, se estiver em outro idioma, é traduzida para o português e pode ser reescrita ao gosto do cliente. Dá para misturar três textos (por exemplo: um do portal G1, um do site da revista Marie Claire e outro da Folha de Pernambuco), bater no liquidificador e gerar um novo, como se o freguês tivesse apurado a notícia por conta própria.
Entre receber de bandeja a sugestão do que publicar, ter o trabalho de dizer “sim” e gerar o texto, pode ser questão de segundos. Segundo os fundadores do 11JAI, dez veículos já utilizam seus serviços, entre eles o jornal de esportes Lance! (a piauí procurou o Lance! para confirmar a informação, mas não obteve resposta).
O projeto JournalismAI, criado para informar e conscientizar profissionais de imprensa sobre o uso de inteligência artificial, fez uma pesquisa em 2023 ouvindo jornalistas de 105 redações em 46 países. A conclusão foi de que 90% dos entrevistados já tinham utilizado tecnologias de IA em pelo menos uma etapa da produção jornalística, e 75% tinham recorrido a elas durante a apuração.
No Brasil, uma das pesquisas mais recentes é A inteligência artificial para jornalistas brasileiros, conduzida pela ESPM em parceria com o boletim semanal Jornalistas&Cia. Segundo o levantamento, publicado no ano passado, 56% dos entrevistados afirmaram utilizar IA em alguma etapa do trabalho – fosse na redação de conteúdo (53,9%), na apuração (27,2%) ou na distribuição (20,1%). Mais de dois terços dos jornalistas ouvidos pela pesquisa (68,3%) disseram temer que a popularização da inteligência artificial implique demissões nas redações.
Marcelo Rech, presidente-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), acha que o assunto hoje causa tanto espanto quanto as redes sociais causaram quinze anos atrás. Em maio, ele viajou à Cracóvia para participar do World News Media Congress, uma conferência internacional realizada todo ano para debater práticas jornalísticas. “Acho que 85% dos painéis discutiam questões relacionadas à inteligência artificial”, diz Rech. “Ninguém sabe exatamente como as coisas vão estar daqui a três anos. Quem disser que sabe está chutando.”
Ainda assim, ele arrisca um palpite. “Qualquer IA é capaz de dizer o resultado de uma votação no Congresso Nacional. Mas nenhuma IA, pelo menos até onde a vista alcança, será capaz de fazer uma apuração de bastidor, de aferir interesses políticos, intrigas, falsas promessas… O jornalismo vai ter que se voltar a uma apuração mais qualificada, mais exclusiva, que a máquina não pode fazer.”
Katia Brembatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), faz uma interpretação similar. Assim como a IA é incapaz de executar algumas tarefas humanas, ela diz, os humanos são incapazes de igualar certas capacidades da IA – como, por exemplo, resumir em questão de segundos as 272 páginas da denúncia apresentada ao STF contra os principais réus da tentativa de golpe, ou analisar os 600 mil discursos proferidos no Congresso desde o começo do século. Essa última empreitada foi uma ideia do jornal O Globo e rendeu boas reportagens. Se tivesse sido feita manualmente por jornalistas, demoraria 10.625 horas – o equivalente ao trabalho de dois repórteres durante dois anos e meio, em escala de oito horas diárias, de segunda a sexta-feira.
Mas é preciso estabelecer diretrizes para o uso da IA, e isso, reconhece Brembatti, ainda está engatinhando no Brasil. Em junho de 2024, o Grupo Globo incluiu em seus princípios editoriais uma série de recomendações sobre o uso de inteligência artificial no jornalismo. Elas dizem que os conteúdos de IA devem sempre passar por supervisão humana, e que o leitor deve ser informado quando estiver lendo um texto produzido por máquina. Outros veículos tradicionais, como O Estado de S. Paulo e a Folha de S.Paulo, produziram regras semelhantes para orientar os funcionários. Fora desse circuito, a tecnologia ainda é usada frequentemente no modo freestyle, sem respeito a direitos autorais e sem que o leitor seja informado do que se passa. Na última quarta-feira (20), seguindo o exemplo do New York Times, a Folha entrou com uma ação judicial contra a OpenAI, criadora do ChatGPT, acusando-a de concorrência desleal e violação de direitos autorais.
Em veículos com menos tradição e menos recursos, a inteligência artificial vem estabelecendo a lei do mínimo esforço, e do jornalismo mais mínimo ainda. “A gente está aprendendo com o carro andando”, diz a presidente da Abraji. “Não temos um fórum em que os jornalistas se reúnam para dizer: ‘Isso aqui é ok, isso não.’ Estamos deixando correr solto. É um perigo.”
Um dos motivos para essa preocupação é o fato de que, além de cometerem imprecisões e copiarem o trabalho alheio, as plataformas generativas às vezes inventam informações. É aquilo que no jargão das IA se chama alucinação: uma resposta textual que não é baseada em fatos ou que simplesmente não faz sentido. Um caso exemplar aconteceu recentemente no jornal Chicago Sun-Times, que recorreu à IA para montar uma lista de leituras recomendadas para o verão e, sem fazer a devida checagem, atribuiu a alguns autores livros que eles jamais escreveram (como um tal de Tidewater dreams, falsamente escrito pela chilena Isabel Allende).
Problema parecido ocorreu com a revista Exame, que há poucos dias publicou em seu site uma matéria listando “as dez vilãs mais icônicas das novelas brasileiras”. O texto era fluido e coerente, com apenas um problema: metade daquelas vilãs nunca existiu. Tudo indica ter sido mais um caso de alucinação de IA, que atribuiu a atrizes como Malu Mader e Bárbara Paz papéis que jamais interpretaram, em novelas das quais não participaram. A matéria foi apagada, mas ficou no ar tempo o suficiente para que leitores detectassem o erro. À piauí, a Exame explicou, por meio de nota, que “tem por diretriz não publicar conteúdo final gerado por IA”, mas que “houve um erro pontual na publicação em questão”. O veículo disse também que suas diretrizes “permitem o uso de IA principalmente para formatação dos textos e, quando a tecnologia é usada, seu uso é sinalizado”.
Nos pampas, enquanto isso, ainda não se formou um consenso a respeito das IAs. Nilson Corrêa, presidente da Associação dos Jornais do Interior do Rio Grande do Sul (Adjori-RS), que reúne 94 veículos, é refratário ao uso delas no jornalismo. “Há uma preocupação de que a inteligência artificial esteja formando um profissional cada vez mais preguiçoso, acrítico, que pensa cada vez menos e se acomoda.” Publicar textos escritos inteiramente por IA, pior ainda: é “temerário”, diz Corrêa. Mas ele reconhece que isso tem sido feito em alguns jornais do qual é dono, como a Folha do Sul e o Jornal Cidade. Corrêa disse ter deixado a critério de seus funcionários a decisão de usar ou não plataformas de inteligência artificial.
Paulo de Tarso discorda do conterrâneo. Embora reconheça que os textos do ChatGPT e do Copilot soem artificiais, o publisher do Em Questão afirma que essas ferramentas melhoram, e não pioram, o jornalista. “É como uma sala de pós-graduação de mestrado de bom jornalismo. Ela [a inteligência artificial] vai te dando links, mostrando onde estão os conteúdos que você quer pesquisar”, diz Tarso. “Tudo depende do prompt – ou seja, da pergunta que você faz para ela.”
Há diferentes ideias de negócio pipocando pelo Brasil para otimizar a produção de textos. O empresário Márcio Silva, por exemplo, teve uma epifania ao descobrir o ChatGPT, poucos anos atrás. Como alguns de seus clientes são sindicatos, um belo dia ele resolveu pedir à plataforma que descrevesse o que era o movimento sindical. A exemplo de Paulo de Tarso, não botava muita fé na inteligência da máquina, mas ficou surpreso com a resposta. Encaminhou o texto então para uma das suas clientes, que o publicou imediatamente no blog da entidade. “Eu falei assim: ‘Daqui pra frente, ninguém mais comete erros, porque o ChatGPT corrige tudo e escreve melhor que o medíocre’”, ele relembra.
Dali a poucos meses, Silva fundou a Izap, espécie de faz-tudo do universo IA. O empresário diz que, até agora, já conquistou oito clientes no jornalismo. A plataforma é versátil – cada cliente escolhe quais funções deseja incorporar a ela. Muitos pedem que a Izap catalogue e organize classificados, sobretudo de empregos e serviços localizados na região onde fica o veículo. Também pedem que, a partir de palavras-chave, a plataforma encontre notícias recém-publicadas em outros portais e as reescreva, de modo que o conteúdo pareça original.
Plágio? Silva diz que a responsabilidade é do cliente. “Eu falo assim para eles: ‘É você quem tem que me ensinar o código de ética da sua área.’ O cliente tem que saber o lado ético do trabalho dele, como vai remunerar o lugar de onde copiou o conteúdo, quando tem que citar [a fonte]…” Questionado, o empresário não revelou nomes de clientes nem se dispôs a intermediar entrevistas com alguns deles. “O cara tá pegando a matéria de outro veículo, copiando e publicando para ganhar dinheiro em cima do suor alheio. Eu não vou chegar para ele e dizer: ‘A piauí tá querendo conversar com você.’”
É difícil encontrar quem tope falar no assunto, apesar do uso disseminado de IA nas redações brasileiras. A piauí fez contato com repórteres de cinco jornais de pequeno porte no interior de São Paulo e do Paraná que aplicam a inteligência artificial no trabalho, mas nenhum se dispôs a dar entrevista. “É o receio de ser confundido com um picareta qualquer”, justificou um deles, que há doze anos trabalha num jornal paranaense. Ele conta que uma de suas atribuições é cobrir as ligas de futebol locais. Ao fim de cada rodada, cabe a ele publicar matérias curtas com um resumo dos jogos e participar de lives comentando o desempenho dos times. Desde o início do ano, resolveu usar o ChatGPT para escrever os textos e aliviar a carga de trabalho. “Agora, eu jogo as informações básicas e o ChatGPT já me dá uma opção de matéria. Aí, é só conferir. Isso agilizou o trabalho.”
A algumas centenas de quilômetros dali, em Alegrete, Paulo de Tarso sonha com aplicações ainda mais radicais da IA. Aguarda o dia em que poderá criar um avatar de si mesmo para apresentar as lives que faz diariamente. “Isso já existe, mas ainda não está tão bom. E tem o problema de alguém perverter e utilizar seu avatar”, ele lamenta. Quando não houver mais entraves, ele garante que os leitores do Em Questão assistirão a boletins apresentados por um Tarso digital.
O veterano, por essas e por outras, é um otimista. De tão entrosado com as máquinas, escreveu recentemente um e-book intitulado A tribo digital – Como a IA modela a nova evolução humana. O livro, que traça um paralelo entre o comportamento humano e os desafios da era digital, ainda não foi publicado. Mas foi, é claro, escrito e revisado com ajuda de diferentes inteligências artificiais.