A estratégia traçada pela Polícia Federal desde o início das investigações no INSS consistiu em dividir a apuração em vários inquéritos, em vários estados. Havia, por trás disso, dois objetivos: dar clareza ao que estava sendo investigado em cada frente (se eram crimes cometidos pela cúpula do INSS, por exemplo, ou por associações locais) e acelerar a coleta de provas, já que dessa forma o trabalho pode ser dividido em muitas equipes. Quando a PF deflagrou a Operação Sem Desconto, em 23 de abril, já havia investigações avançadas em Brasília, Sergipe, Minas Gerais, São Paulo e Ceará, cada qual com características próprias.
Por isso, foi com grande surpresa que os investigadores receberam, na terça-feira, dia 24 de junho, a notícia de que um delegado havia acionado o STF pedindo que todos os inquéritos relacionados ao INSS fossem unificados sob a relatoria do ministro Dias Toffoli. O delegado pediu também que as investigações fossem todas subordinadas a um outro inquérito, conduzido por ele mesmo, que investiga um assunto totalmente diverso: as conhecidas acusações do advogado Rodrigo Tacla Duran contra o senador Sergio Moro (União-PR) e o ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Novo-PR), por fatos ocorridos na época da operação Lava Jato. Esse inquérito já estava em curso um ano antes de eclodir o escândalo do INSS.
O pedido causou surpresa não apenas por essas incongruências, mas também porque o delegado, que se chama Rafael Dantas, sequer participa das investigações sobre o INSS. Ouvidos pela piauí sob a condição de anonimato, dois delegados que atuam no caso disseram que não foram consultados por Dantas. Ficaram sabendo do pedido por meio da imprensa.
No ofício enviado a Toffoli, Dantas estabelece um raciocínio tortuoso para conectar as investigações do INSS ao inquérito de Tacla Duran (coincidentemente, foi Toffoli quem escolheu Dantas para conduzir esse inquérito anterior). O delegado sugere que, na época em que era ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro ajudou a criar a estrutura normativa que, mais tarde, permitiria a expansão das fraudes no INSS. Isso aconteceu, segundo ele, por meio da Medida Provisória 870/2019, publicada no primeiro dia do governo Bolsonaro.
A MP deu ao Ministério da Justiça o poder de regular sindicatos e associações patronais e de trabalhadores – entidades que, tempos depois, desviaram bilhões de reais de aposentados e pensionistas. A medida, contudo, foi assinada por Onyx Lorenzoni (PP-RS), coordenador da equipe de transição que depois assumiu o cargo de ministro da Casa Civil. O delegado não explica se teve acesso a informações dando conta de que a MP, embora assinada por Lorenzoni, tenha sido arquitetada por Moro. Também não menciona que, tão logo a medida tramitou no Congresso, o Ministério da Justiça perdeu o poder de regular os sindicatos e associações patronais, função que foi transferida para o Ministério da Economia, de Paulo Guedes. Moro ficou com essa atribuição por pouco mais de seis meses.
“Esse cenário de desregulamentação explica, ainda de maneira parcial e perfunctória, a estrutura à qual aposentados e pensionistas foram expostos e vitimados”, escreveu o delegado Rafael Dantas. Ele situa Moro na “gênese” do esquema criminoso – uma interpretação que não consta em nenhum dos inquéritos da PF até o momento. “Frise-se que a hipótese criminal que se revela diz respeito à gênese da estrutura que foi conjecturada para acometer um massivo e espúrio desconto realizado para com aposentados e pensionistas do Regime Geral de Previdência Social”, continua Dantas. Até agora, nenhuma manifestação da PF, da Controladoria-Geral da União (CGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) ou do próprio STF estabeleceu esse nexo causal.
O delegado também cita um depoimento prestado por Tacla Duran, que advogou pela Odebrecht na época da Lava Jato e se tornou um desafeto de Moro, de quem diz ter sofrido extorsão. Segundo Dantas, Tacla Duran relatou que dois aliados de Moro buscaram o Sindicato de Hotéis de São Paulo em novembro de 2018 para negociar apoio institucional e vender serviços do escritório de advocacia do então juiz. Esses dois aliados, de acordo com o delegado, são Fabio Bento Aguayo (atual assessor de gabinete de Moro no Senado) e Carlos Zucolotto Jr. (ex-sócio do escritório de advocacia de Rosangela Moro, deputada federal casada com o senador). Em troca de apoio, segundo Tacla Duran, Aguayo e Zucolotto ofereceram facilidades para liberar as contribuições associativas que proliferaram no INSS.
O ofício menciona ainda um “arquivo de áudio onde Sergio Martins, advogado do Sindicato de Hotéis de São Paulo, revela as negociatas propostas pelos emissários de Sergio Moro”. Rafael Dantas também diz que, segundo as informações apresentadas por Tacla Duran no inquérito, “Moro já procurava auferir vantagens indevidas mesmo antes de ser ministro da Justiça, mas em razão do cargo, o qual de fato ocupou”. Os fatos relatados por Tacla Duran aconteceram, em tese, quando Moro já atuava no gabinete de transição de Bolsonaro. (A existência do áudio já é conhecida desde 2023, quando o inquérito chegou ao STF.)
No pedido feito a Toffoli, o delegado Rafael Dantas também cita brevemente Dallagnol e reforça que as acusações de Tacla Duran guardam relação com o esquema que está sendo investigado no INSS. “Estas informações têm o condão de denotar a existência de investigações difusas e esparsas, contudo, conexas, sendo a melhor medida investigativa a reunião de todos os apuratórios”, ele diz, “haja vista a existência de investigados com prerrogativa de foro junto ao Supremo Tribunal Federal”. Ao mencionar o foro privilegiado, Dantas está se referindo não apenas a Moro, mas também ao ex-ministro Onyx Lorenzoni e ao deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), que são citados na investigação do INSS.
“Com isso, conclui-se que as investigações devem ser realizadas inicialmente no âmbito deste INQ 4946, com vistas a viabilizar o proveito investigativo a ele afeto”, diz o delegado, por fim. Para Dantas, as investigações do INSS não apenas têm relação com o inquérito de Tacla Duran como a ele devem ser submetidas.
Em decisão do dia 10 de junho, Dias Toffoli acatou parcialmente o pedido do delegado. O ministro solicitou cópias de quinze inquéritos em apuração na Justiça Federal, entre eles os que mencionam Lorenzoni e Pinato, puxando o caso INSS pela primeira vez ao Supremo. Caberá a ele decidir se as investigações sobre os parlamentares prosseguirão. Toffoli ainda não se manifestou, porém, sobre a unificação dos inquéritos, e demonstrou não ter sido convencido sobre o suposto elo de Moro com as fraudes do INSS. “De início, destaco não vislumbrar, em uma análise perfunctória, que os fatos narrados no INQ 4946, supostamente envolvendo o senador Sergio Moro, guardem uma relação mais estreita com aqueles em apuração na ‘Operação Sem Desconto’.”
O esquema das fraudes no INSS foi construído lentamente ao longo dos anos, passando por pelo menos três governos, como demonstrou a piauí em reportagem publicada este mês. Os desvios começaram nos anos Michel Temer (2016-2018), ganharam musculatura nos anos Bolsonaro (2019-2022) e explodiram neste terceiro governo Lula. Isso fez com que, desde o primeiro momento, governistas e opositores se acusassem mutuamente pelo escândalo.
Agora que parte da investigação chegou ao STF, essa disputa política começa a reverberar também no tribunal. Embora não haja confirmação, por ora, de que inquéritos do INSS serão conduzidos pelo Supremo, já se especula quem será o relator da matéria caso isso aconteça. A definição da relatoria pode ser feita de duas formas: por sorteio ou pela chamada “prevenção” – quando um ministro assume o inquérito porque, em outro processo, já tratava do mesmo assunto.
O pedido do delegado Rafael Dantas, portanto, chama atenção também pelo timing. Há duas semanas, o ministro André Mendonça enviou ofícios à CGU, à PF e ao TCU pedindo informações sobre suspeitas de fraudes, omissões e práticas abusivas no caso do INSS. Agora que Toffoli também entrou na jogada e tem inquéritos do INSS em mãos, ele também se torna um potencial candidato a relator. Assumindo a relatoria, ele poderá conduzir todos os demais inquéritos que tiverem relação com o escândalo e chegarem ao STF. Toffoli inclusive menciona isso na decisão de 10 de junho, ao dizer que “faz-se necessário o compartilhamento dos respectivos autos para exame e análise conjunta (…) sobre eventual conexão e prevenção estabelecida.”
A maneira como o caso chegou às mãos de Toffoli é uma daquelas histórias improváveis que só são possíveis em Brasília. Tudo começou em 2020, quando Lula moveu uma ação em que pedia acesso a provas que haviam sido usadas contra ele na Lava Jato. A relatoria do caso foi sorteada, na época, para o ministro Ricardo Lewandowski. Quando o STF recebeu em 2023 o inquérito de Tacla Duran, ele foi remetido por prevenção a Lewandowski, já que os dois casos diziam respeito à conduta de Moro como juiz. O ministro, porém, se aposentou pouco depois, e sua vaga na Segunda Turma foi ocupada por Toffoli, que herdou os dois inquéritos. Assim, caso assuma a relatoria dos inquéritos do INSS, Toffoli só o terá feito porque Lula acionou o tribunal cinco anos atrás enquanto tentava reverter sua condenação.
Por ora, os desdobramentos do escândalo do INSS continuam espalhados pelo país. Em Brasília, tramita a investigação sobre a cúpula do instituto, que, segundo a apuração da PF, ignorou uma série de alertas internos e externos sobre a existência da fraude bilionária. Em outros estados, tramitam as ações contra as entidades associativas acusadas de terem praticado desvios.
A piauí perguntou ao diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, se a corporação endossa o pedido feito pelo delegado Rafael Dantas ao ministro Dias Toffoli, mas Rodrigues não quis se manifestar. Consultado, o senador Sergio Moro, por sua vez, enviou uma nota à piauí. Afirma que Tacla Duran “nunca apresentou qualquer prova das acusações infundadas que fez em 2016 contra pessoas a mim relacionadas” e lembra que o áudio mencionado por Rafael Dantas já foi divulgado antes. Diz que o escândalo do INSS envolve o Ministério da Previdência, e não o da Justiça. E encerra fazendo o jogo da narrativa política, ao levantar a suspeita de que pedido do delegado da PF “parece uma tentativa tosca de desviar a atenção das responsabilidades da escalada dos crimes durante o governo Lula”.