O 12 de maio estava bem planejado. No fim da tarde, o artista mineiro Paulo Sérgio da Silva, mais conhecido como Paulo Nazareth, e a esposa, a professora universitária Luciana de Oliveira, buscariam na escola os dois filhos. Depois seguiriam para a sede do Centro Cultural Banco do Brasil em Belo Horizonte, na Praça da Liberdade, região central da capital mineira, para ver a exposição Ancestral: Afro-Américas (Estados Unidos e Brasil), que estava em seu último dia de visitação.
Logo que entraram no prédio, Nazareth, 48 anos, e Oliveira, 51, foram retirar os ingressos. Na saída da bilheteria, com os quatro tíquetes em mãos, se surpreenderam com a abordagem de uma funcionária terceirizada que trabalhava na segurança do local. Constrangida, mas em tom firme, ela se aproximou da professora universitária, perguntou se seu marido não tinha sapatos guardados na bolsa e se ele não poderia calçá-los. Diante da negativa, a funcionária afirmou que Nazareth não poderia adentrar o prédio do CCBB, por violar uma norma de visitação do local.
Contrariado e constrangido, Nazareth, que é um homem negro com ascendência indígena, pediu que fosse apresentado algum documento no qual constasse a tal regra que o impedia de entrar descalço. O imbróglio seguiu por mais alguns minutos até que a funcionária chamou um homem descrito por ela como um supervisor que poderia resolver o impasse – segundo o CCBB, o homem é um funcionário terceirizado responsável pelo atendimento ao público.
O que Nazareth não mencionou, segundo ele mesmo, é o fato de ser um artista plástico. E, mais do que isso: estava expondo seus trabalhos dentro da mostra que acontecia ali dentro. É dele a série Ovo de Colombo – Produtos de genocídio (2020). A montagem era formada por três objetos em formato elíptico: ovos feitos com resina, de mais ou menos 50 centímetros, cujo interior continha produtos variados, como um saco de farinha de mandioca da marca Tipity. Os itens fagocitados por aquela forma transparente remetiam à apropriação, pelos colonizadores, de imagens, palavras e conhecimentos dos povos indígenas e negros mediante exploração.
Para Nazareth, isso não fazia diferença. Queria acessar o lugar como qualquer outra pessoa.
Assim que o supervisor chegou, porém, Nazareth fez um relato detalhado explicando que o fato de estar descalço tinha relação com sua produção artística. Ele atua dentro de uma espécie de ética denominada como “arte de preceito” – em religiões de matriz afro-brasileira, o preceito pode ser entendido como um compromisso com os rituais e a prática religiosa. Desta forma, o que Nazareth cria artisticamente extrapola os museus e alimenta sua vida; e o fluxo contrário também ocorre. No último ano, uma de suas ações foi andar a todo tempo com os pés nus, não somente em exposições, mas também nos afazeres cotidianos.
Não foi uma decisão abrupta, mas maturada com paciência, e que mistura sua biografia a fatos históricos. Em 2009, quando começou a ser notado pelo cenário artístico de São Paulo e Rio de Janeiro, Nazareth era conhecido por frequentar todo tipo de espaço, pomposo ou não, com alpargatas nas cores branca e azul. Depois, experimentou confeccionar chinelas tal como Ana, sua mãe, que, forçada a trabalhar desde a infância, não dispunha de recursos para comprar sapatos, e por isso os produzia.
Para Nazareth, portanto, andar descalço é uma forma de conectar a própria existência ao histórico de desigualdades sociais que vigora no país desde o período colonial. “Os pés descalços eram um marco objetivo da escravidão, na medida em que o uso de sapatos era vetado aos cativos”, assinalam as pesquisadoras Cecília Elisabeth Barbosa Soares, pós-doutora em sociologia pela Sciences Po-Paris, e Olga Velozo, doutora em comunicação pela PUC-Rio, no artigo Modas, calos e cetins: os sapatos como símbolos distintivos no Rio de Janeiro do século XIX, publicado em abril de 2020.
Nazareth explicou tudo isso ao supervisor, que reiterou a proibição sem apresentar qualquer regra instituída nas normas de visitação do CCBB. Ele afirmou ainda que um dos motivos para aquela objeção era a possibilidade de haver fragmentos de madeira no piso de taco, presentes em alguns dos espaços expositivos. Esse argumento não estava explanado nas regras ou avisos do espaço. Por fim, segundo Nazareth, o supervisor disse: “Se sua família quiser entrar, eles podem, porque estão calçados. Mas você não pode, porque está sem sapatos.”
Oliveira, uma mulher lida como branca, comentou o episódio à piauí. “Se o Paulo não pode entrar, nós também não podemos. Quando o Paulo é barrado por ter cabelo crespo ou estar descalço, nós todos somos barrados juntos. Conversamos muito com as crianças. Mesmo elas sendo pessoas consideradas brancas, o racismo afeta todo mundo, porque ele cria uma erosão em todas as relações sociais.”
No site do Centro Cultural Banco do Brasil, há uma página dedicada às normas de visitação da unidade em Belo Horizonte. Não há qualquer item referente à proibição de entrada de pessoas que estejam descalças. Ao contrário, é informado no documento que “o acesso do prédio é livre, sujeito à lotação dos espaços”. As restrições se encontram na seara do consumo de alimentos e bebidas em espaços expositivos e no porte de “bolsas, malas ou mochilas que tenham dimensões superiores a 30x15x30 cm”. Também são especificados os itens que podem ser guardados no guarda-volumes: “não é permitido guardar produtos perecíveis, material ilícito, bebidas, produtos inflamáveis, armas ou objetos que possam representar riscos aos visitantes e/ou ao prédio.”
Com a lista de regras para visitação em mãos, Nazareth voltou ao CCBB mineiro uma semana depois, em 19 de maio. Dessa vez, além da esposa e dos filhos, também foram com ele o irmão Júlio, 45 anos, e o seu sobrinho, um garoto negro e menor de idade. O artista estava descalço, mas dessa vez não foi barrado. Ele estava lá para ver a mostra individual Um escultor de significados, do artista paulistano Flávio Cerqueira, que utiliza o bronze, material nobre na história da arte, não para retratar a elite, mas para dar forma a personagens com traços negros e indígenas.
Nazareth disse à piauí que tinha visitado metade da exposição quando travou um diálogo em pensamento com Exu, seu orixá. “Falei para ele: ‘Foi só uma questão daquela segunda-feira eu ter sido barrado. Um desentendimento. Agora, está tudo resolvido.’” O artista, então, continuou a visita. “Quando baixei a guarda, eles vieram.” Nazareth foi retirado do espaço expositivo novamente. Seguranças terceirizados alegaram o mesmo de antes: ele estava sem sapatos. E adicionaram, de acordo com seu relato: “a sua vestimenta também não está adequada” – ele usava uma calça cinza de algodão, uma malha vermelha por cima da camiseta e uma bolsa marrom.
Nazareth não recuou. Com as normas de visitação impressas em um papel, avisou ao público o que estava acontecendo, como verificou a piauí no vídeo gravado pelos familiares do artista. “Fiz então uma performance”, disse o artista. Júlio, seu irmão, conta que a abordagem durou cerca de 20 minutos e que um dos funcionários deu uma sugestão: “Diante da inexistência daquela norma, foi sugerido ao Paulo que ele escrevesse para o CCBB pedindo que eles incluíssem no espaço placas com a proibição de se entrar sem sapatos.”
O artista conta que já foi impedido de entrar descalço no supermercado. “O mercado não é o lugar onde eu quero estar.” Também já se negaram a levá-lo em um táxi. “Deixo para lá e busco outro transporte.” Ter sido impedido de entrar no CCBB, contudo, não é algo que ele consegue absorver rapidamente. “Mas em um centro de cultura em que se fala de acolhimento? Em um lugar que nos últimos anos tem discutido a questão afro-índigena. Esse era um lugar, que, em princípio, eu me sentia de seguro para circular.”
A responsabilização dos funcionários, no entanto, é algo que o preocupa. “Muitas vezes o que acontece é culpabilizar a ponta. Dizem ‘mandamos o segurança embora, ele foi para uma reciclagem’. Porém, quem deve ir para reciclagem é a instituição.”
Formado em Belas Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Nazareth é um dos mais proeminentes artistas contemporâneos brasileiros. Sua produção navega pela história de sua família e das diásporas africanas. Suas obras são fotos, vídeos e pinturas, mas também suas caminhadas pelo mundo e a forma como narra sua história. Apresentou obras na 56ª Bienal de Veneza, em 2015, e na 34ª Bienal de São Paulo, em 2021.
Em nota, o CCBB de Belo Horizonte lamentou o ocorrido e informou que as equipes contratadas já foram prontamente reorientadas quanto às normas de visitação. “Eventualmente, podem existir orientações específicas relacionadas à preservação de determinadas obras ou à segurança dos visitantes, como em situações que envolvam instalações sensíveis ou intervenções no piso — o que não se aplicava neste caso.”
A instituição afirmou ainda que “não há, nas normas de visitação do espaço, restrição quanto ao acesso, circulação ou permanência de pessoas descalças no prédio, e a abordagem realizada não reflete as diretrizes institucionais do CCBB”. Ou seja, não era proibido entrar sem sapatos.
A administração disse também que “só tomou conhecimento do fato após o ocorrido”. “Tentamos contato com o artista, pelos contatos disponíveis no nosso cadastro, mas não tivemos retorno”, conclui a nota.
Nos minutos finais da conversa, Nazareth disse que enviaria um imagem à piauí e, em seguida, explicou seu contexto. “Eu queria pintar flores, simplesmente. Mas as flores que pinto são as flores de santo, de proteção. É difícil sair desse lugar de falar de violência, discriminação, racismo e classismo. Não quero ficar nele, mas parece que ele é sempre destinado a nós.”