Pouco depois de Charlie Kirk ser morto com um tiro em um evento universitário em Utah, no dia 10 de setembro, Tyler Robinson, principal suspeito do assassinato, enviou uma mensagem de texto a um amigo: “Lembra que eu estava escrevendo em balas? A porra das mensagens eram basicamente um grande meme, se eu vir ‘notices bulge uwu’ na fox news vou ter um derrame.” A mensagem, revelada pela polícia dias depois, reforçou a suspeita contra Robinson. Afinal, segundo as autoridades, a bala disparada contra Kirk continha um meme inscrito no cartucho – o tal “notices bulge”, seguido de “OwO”. É uma piada sexual em linguajar mêmico, difícil de entender fora de contexto e mais ainda de explicar, mas faço uma tentativa: a frase descreve alguém que “nota um volume” na calça de outra pessoa (“notices bulge”) e fica espantada (“OwO” é um emoticon que representa um rosto surpreso, de olhos esbugalhados).

Quando escreveu para o amigo, Robinson parecia ainda ter esperanças de não ser encontrado. Mas isso durou pouco: depois de 33 horas de buscas, seus pais o reconheceram nas imagens divulgadas e o convenceram a se entregar à polícia perto de sua casa, na cidade de St. George, a mais de 400 km do local do crime. Ele é acusado de homicídio qualificado e pode ser condenado à pena de morte, prevista por lei em Utah. Suas motivações viraram objeto de grande especulação, em se tratando de um caso com óbvias implicações políticas. Kirk, de 31 anos, era uma liderança em ascensão na extrema direita. Foi um dos fundadores do Turning Point USA, uma organização política conservadora, e há tempos despontara como porta-voz da juventude trumpista.

O assassinato causou uma reação em grande escala. Elevado pela direita ao status de mártir, Kirk foi homenageado com bandeiras a meio mastro por todo o país e um minuto de silêncio em jogos da liga nacional de futebol americano. Seu velório reuniu cerca de 100 mil pessoas no Arizona no último domingo (21), entre elas o presidente Donald Trump, o vice J. D. Vance e o bilionário Elon Musk. Com tantas autoridades, a cerimônia se assemelhou a um funeral de Estado. Criticar o morto – que, entre outros disparates, chamou pessoas transgênero de “aberrações” – virou uma heresia.

Vance fez um apelo aos seguidores de Kirk: que identificassem e denunciassem as pessoas que comemoraram o seu assassinato, pressionando para que elas fossem demitidas de seus empregos. Deu certo. Mutirões foram montados para constranger quem havia criticado o influenciador nas redes sociais. A página Expose Charlie’s Murderers, depois rebatizada de Charlie Kirk Data Foundation, montou uma planilha pública na qual, segundo os organizadores, constavam nomes e informações de milhares de pessoas. A planilha acabou sendo tirada do ar, provavelmente por receio de ações judiciais, mas seus colaboradores ainda recebem denúncias por e-mail e celebram anúncios de novas demissões como “mais uma vitória”.

Pam Bondi, chefe do Departamento de Justiça, ameaçou de processo um funcionário da franquia Office Depot que se negou a imprimir pôsteres em homenagem a Kirk. O talk show de Jimmy Kimmel, dos mais conhecidos no país, no ar desde 2003, foi suspenso depois do apresentador dizer que os trumpistas estavam tentando capitalizar em cima da morte de Kirk e ofuscar, com isso, qualquer acusação de que Robinson era, na verdade, um radical de direita (o programa voltou ao ar, finalmente, nessa terça-feira). A colunista Karen Attiah, do jornal The Washington Post, afirmou ter sido demitida após reproduzir em suas redes uma frase de Kirk sobre cotas raciais, em que o trumpista lamentou a “falta de processamento cerebral” de quatro mulheres negras. 

Antes mesmo de Robinson ser preso, Trump creditou o assassinato à “esquerda radical” e fez disso um pretexto para avançar sua agenda autoritária. No dia 17 de setembro, anunciou a inclusão dos Antifa (abreviação de anti-fascist) na lista de grupos considerados terroristas pelo governo americano, embora não se trate de uma organização propriamente dita, e sim uma linha de atuação política. Justamente por ser um grupo difuso, isso pode dar margem ao governo para classificar quaisquer adversários como Antifa e mobilizar contra eles a mais dura repressão antiterrorista.

Trump, é claro, se precipitou ao situar o assassino na esquerda radical. Até agora, apesar da enorme repercussão do crime, há poucas certezas sobre o que pensa Robinson e o que o motivou. As autoridades e pessoas próximas a ele concordam num único ponto: trata-se de alguém terrivelmente online.

Robinson tem 22 anos, não é filiado a nenhum partido e não votou na última eleição presidencial, em 2024. Seu perfil não é o de um típico militante progressista. Homem cis, branco, criado no subúrbio de uma pequena cidade de Utah, em uma família republicana, Robinson sempre foi apaixonado por atividades ao ar livre e armas de fogo. Navegava com desenvoltura em ambientes online, sobretudo em fóruns como Reddit e Discord, muito presentes na cultura gamer. São ambientes que, nos últimos anos, demonstraram ser terreno fértil para o conservadorismo, propiciando uma mistura explosiva de rebeldia juvenil e ressentimento com misoginia e racismo. 

Esse conjunto de informações fez com que muita gente especulasse se Robinson não era, na verdade, um radical de direita, para quem Kirk não passava de um moderado, um traidor da causa. De fato, há subdivisões desse gênero no campo conservador, algumas delas particularmente agitadas. Seguidores de Nick Fuentes, um militante ultradireitista de 27 anos, detestavam Kirk por considerar que ele pegava leve nos ataques a minorias e a todos que supostamente impedem os Estados Unidos de se tornarem um país melhor – isto é, mais branco, cristão e patriarcal. Na tentativa de desmoralizar o seu desafeto, os discípulos de Fuentes, conhecidos como groypers, recorriam a uma tática típica da internet: a ridicularização. A partir de 2019, empreenderam aquilo que chamavam de “groyper wars” – guerras, no sentido figurado, contra Kirk e suas ideias. Pautados pelo livre escracho, esses jovens compareciam a eventos do influenciador e o ridicularizavam com perguntas vexatórias, sobretudo de cunho sexual. Nesse contexto, um ataque a tiros com memes anotados nos projéteis talvez fosse considerada pelos groypers a maior “zoação” de todas. Ou, para usar um jargão da web sobre piadas idiotas, o maior shitpost de todos.

Balas inscritas com piadas internas, ou assassinos referenciando memes em seus manifestos, não são uma novidade. Já tinham aparecido em outros ataques a tiros: em 2019 na mesquita de Christchurch, na Nova Zelândia; em janeiro de 2025, numa escola em Nashville; e no fim de agosto, na igreja Annunciation Catholic Church, em Minneapolis. No meio das piadas, costuma haver recados políticos e mensagens de ódio que evidenciam a motivação do crime. Também é comum, no entanto, que esses recados sejam conflitantes entre si, sem um nexo claro, provavelmente uma estratégia para despistar os investigadores.

O caso de Robinson segue essa linhagem. Além da frase encontrada na bala que matou Kirk (“notices bulge OwO what’s this???”), a polícia disse ter achado no rifle outros cartuchos não disparados que continham as seguintes inscrições: “hey fascist! catch! ↑ → ↓ ↓ ↓”, “O Bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao” e “if you read this you’re gay lmfao”. Não é surpreendente que as autoridades não tenham conseguido decifrar esse emaranhado de frases e símbolos sem contexto. Um boletim inicial da polícia chegou a dizer que as mensagens faziam referência à “ideologia transgênero” – uma interpretação que, mais tarde, os investigadores reconheceram estar errada.

Como grande parte das subculturas online, esses memes demandam uma dose extra de contextualização para serem compreendidos. Parte da graça, para quem compartilha da piada, está justamente na sua impenetrabilidade – no fato de que, para quem vê de fora, são ideias incompreensíveis. Isso é bem demonstrado pela mensagem que Robinson enviou a seu amigo, dizendo que teria um derrame (de risos) caso visse os seus memes num veículo tão mainstream quanto a Fox News.

A primeira das frases inscritas é, além de uma tirada sexual, uma referência ao universo furry, em que humanos criam e interpretam animais antropomorfizados. A segunda faz referência ao game Helldivers 2, em que o jogador controla soldados fascistas. As setas anotadas por Robinson são uma sequência de comandos que permite lançar uma bomba arrasadora, a mais poderosa do jogo. A terceira frase é a menos obscura: Bella ciao é a canção que se tornou um hino antifascista na Itália e foi popularizada de uns anos para cá graças à série La casa de papel, da Netflix. A quarta frase, por fim, é um exemplo de humor homofóbico de quinta série: “se você ler isto, você é gay kkkkk”.

As provas subsequentes colhidas pelas autoridades, além de depoimentos da família, apontam uma provável inclinação de Robinson à esquerda. Nas mensagens trocadas com o amigo, com quem dividia quarto, ele escreveu sobre Kirk: “Estou farto do ódio dele. Alguns tipos de ódio não podem ser negociados.” Sua mãe relatou que ele vinha se tornando “mais a favor dos direitos dos gays e trans” e que criticou Kirk recentemente em um jantar de família. A polícia também afirmou que o jovem tinha um relacionamento amoroso com o colega de quarto, que, segundo consta, passava por um processo de transição de gênero. Que esse amigo tenha colaborado com as investigações desde o início, inclusive entregando à polícia mensagens incriminantes que Robinson lhe pedira para apagar, não foi suficiente para impedir que direitistas o expusessem nas redes e culpassem uma suposta agenda transsexual pelo crime.

Mas ainda que o mistério seja resolvido e, com isso, possamos localizar Robinson no espectro político, ainda assim não será possível dar o caso por resolvido, situando-o na longa história de assassinatos políticos nos Estados Unidos. A política – o confronto de classes e ideologias – aparece em segundo plano aqui, enevoada. Não estamos diante de um assassinato político no sentido clássico. Mais parece um crime cibernético, em que a internet não é item acessório, e sim o principal elemento da trama. Para Robinson, ao que tudo indica, o crime em si também era um meme, e talvez a performance estética tenha sido o seu principal objetivo. De onde vem essa estranha disposição de transformar um homicídio numa hermética piada?

Lançado em 2017, quando o mundo ainda estava estupefato com a primeira eleição de Trump, Kill all normies: Online culture wars from 4chan and Tumblr to Trump and the alt-right (sem tradução para o português) pode até ser considerado um livro antigo, se levarmos em conta a velocidade com que se movem as subculturas online. Uma de suas teses centrais, no entanto, ajuda a entender o assassinato de Kirk. Autora do livro, a pesquisadora Angela Nagle defende que a estética predominante nesses submundos digitais é a da transgressão; a de se posicionar contrariamente a ideias tidas como consenso social – sobretudo as vinculadas ao progressismo, que costumam exigir uma dose de compromisso moral e autocrítica. Ser transgressivo, dentro dessa lógica, tem aspecto de originalidade indomesticada, de niilismo gratuito e de apreço pelo caos. O modo mais comum de praticar tudo isso, na internet, é recorrer ao humor irônico, cínico, sem limites. Em outras palavras, recorrer aos memes.

Memes com “piadas” extremistas são notórios pela ambiguidade. Escondem-se numa névoa de autoironia em que não é possível distinguir o humor da mensagem central. Nunca estão querendo dizer realmente o que estão dizendo, ou melhor, estão dizendo, sim, mas ironicamente. Essa superposição de camadas semânticas, ao mesmo tempo que serve de escudo contra críticas, faz a alegria de quem compartilha daquela piada interna. Qualquer busca por sentido, por uma mensagem estruturada, é uma batalha perdida já de saída. A procura inócua pela piada é, em si mesma, a própria piada.

Essa ambiguidade também ajudou, no Brasil, a popularizar páginas de humor que promoviam Jair Bolsonaro desde as suas primeiras movimentações presidenciáveis. Especialmente no Facebook, quando a rede social ainda era muito frequentada pelos jovens, a ironia aparecia logo no título de páginas como “Bolsonaro Opressor 2.0”. Estava claro que essas páginas faziam uma divulgação positiva do então deputado federal, mas se alguém confrontasse seus criadores, a resposta de manual, usada ainda hoje, seria de que tudo não passava de gozação. Aqui, o humor opera não apenas na base da confusão, da impenetrabilidade. Para seus praticantes, a maior graça está em ver pessoas se ofendendo com as piadas, “pegando pilha” ao levar a brincadeira a sério. O choque causado por esse humor, que indubitavelmente continha ofensas, era o seu maior combustível.

Podemos supor que, para Robinson, imaginar seus memes na Fox News era engraçado em ao menos três níveis. Primeiro, na superfície: havia ali duas piadas com conotações sexuais que, ao serem lidas em voz alta, são provocativas, sobretudo num canal de tevê conservador. Segundo, porque quem lê aquelas frases ao vivo não faz a mínima ideia de seu significado. Terceiro, porque associar as piadas ao crime é obrigar todo mundo a procurar nelas algum sentido prático que provavelmente não está lá.

A ironia metalinguística dos memes é poderosa. Na qualidade de “piada”, eles se disseminam com facilidade e extrapolam os microuniversos online de onde vieram. Isso faz com que mesmo adolescentes não radicalizados, apenas por estarem online, sejam fluentes em memes misóginos como “não sobra nada pro beta” – frase que significa algo como “não sobra nenhuma mulher para os homens bonzinhos”. Aqui, como de praxe, a citação ao meme é revestida de camadas de ironia que borram as fronteiras do dito e do não dito. Quem replica a frase concorda ou debocha dela? Como escreveram os jornalistas Ryan Broderick e Adam Bumas, especialistas no assunto, esse tipo de conteúdo “é a água em que os jovens nadam hoje em dia”.

É possível imaginar que Robinson, aguardando julgamento em Utah, esteja mais preocupado com a repercussão do crime entre os seus pares do que com a repercussão política. Se for confirmada a suspeita de que ele se identificava mais com a esquerda do que com a direita, talvez estejamos diante de um caso paradigmático. Tão tradicionais como armas da alt-right – a nova direita americana –, a ironia cínica da internet e a violência armada terão chegado em proporção inédita ao outro lado do espectro político. Uma demonstração de que o radicalismo gestado na internet tem menos fidelidade a ideologias do que a uma lógica própria, autorreferencial. Parece que, cada vez mais, é preciso decifrá-la para entender o que se passa no mundo.





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