Picasso – um rebelde em Paris, de Simona Risi, estreou em amplo circuito de cinemas brasileiros, há duas semanas, sem causar alvoroço, tendo sido recebido tanto pela mídia quanto pelo público com aparente indiferença. Nos primeiros dias em cartaz, de 11 a 14 de setembro, o documentário sequer apareceu na lista das vinte maiores rendas e públicos do portal Filme B. Pode-se presumir, portanto, que não tenha sido visto por sequer 779 espectadores, número de pessoas que foram assistir às 3h18m do último da tabela – Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman, considerado uma obra-prima por alguns, embora haja quem julgue ser apenas uma entediante apresentação do cotidiano.
O título completo de Picasso – um rebelde em Paris inclui História de uma vida e de um museu, o que evidencia a ambiguidade do filme entre proclamar o inconformismo do protagonista e fazer a exaltação institucional do Museu Nacional Picasso – Paris, dedicado à sua obra.
Outra ambivalência patente, mais perturbadora, é a existente entre a obra de vanguarda de Picasso, precursora do cubismo, e a linguagem convencional do suntuoso documentário biográfico de Risi, apesar de ele incluir breves trechos de O mistério de Picasso (1956), de Henri-George Clouzot, sobre o qual André Bazin escreveu o famoso artigo Um filme bergsoniano: O mistério de Picasso. O artigo de Bazin foi incluído no livro O que é o cinema?, publicado no Brasil em 2018 pela Ubu Editora, com tradução de Eloisa Araújo Ribeiro.
Ao contrário de Picasso – um rebelde em Paris, definido por seu próprio título como “história de uma vida”, O mistério de Picasso é um filme inovador e austero, concentrado no processo de criação do artista, que prescinde da biografia e se dedica não ao conjunto de sua obra, mas aos cerca de vintes desenhos e pinturas criados durante a filmagem e que, ao que consta, foram destruídos em seguida. Segundo Bazin,
a primeira observação que se impõe é que O mistério de Picasso ‘não explica nada’. Clouzot parece acreditar, se nos ativermos a algumas declarações e ao preâmbulo do filme, que o fato de os quadros serem vistos enquanto são feitos os torna compreensíveis aos profanos. Se isso for o que ele realmente pensa, ele está enganado… O mistério de Picasso distingue-se radicalmente dos filmes sobre arte mais ou menos diretamente didáticos realizados até hoje. De fato, o filme de Clouzot não explica Picasso, ele o mostra, e se há uma lição a ser tirada daí é que ver um artista trabalhar não poderia dar a chave de sua genialidade, isso é óbvio, e tampouco de sua arte… O que O mistério de Picasso revela não é o que já sabemos, a duração da criação, mas que essa duração pode ser parte integrante da própria obra, uma dimensão suplementar, totalmente ignorada na fase de acabamento. Mais exatamente, nós só conhecemos até agora ‘quadros’, seções verticais de um fluxo criador mais ou menos arbitrariamente cortadas pelo próprio autor, pelo acaso, pela doença ou pela morte. O que Clouzot nos revela, enfim, é a ‘pintura’, isto é, um quadro que existe no tempo, que tem sua duração, sua vida e às vezes – como no final do filme – sua morte.
Desconsiderada por Didi Gnochi e Sabina Fedeli, autoras do argumento e coautoras com Ariana Marelli do roteiro de Picasso – um rebelde em Paris, a lição de Bazin é substituída pelo relato centrado na biografia de Picasso, que explicaria tudo. Nada deixa de ser esclarecido pela narração e as entrevistas de um grupo ilustre, formado por uma escritora, a diretora do Museu Picasso, duas curadoras de arte, um historiador da arte, um historiador, um designer de moda, dois artistas e um gestor artístico e cultural. Mais de uma centena de quadros de Picasso pertencentes ao acervo do Museu Picasso e alguns a outros museus franceses, além de a museus de diferentes países, assim como de coleções particulares, são usados para ilustrar informações contidas nas declarações dos especialistas e no texto em voz off e, por vezes, in da narradora.

Obra de Picasso em uma sala de exposição — Crédito: Autoral Filmes
Mais comprometedora ainda, porém, do que a linguagem exuberante, mas convencional de Picasso – um rebelde em Paris, é a tentativa desastrada de tornar o artista, morto em 1973, aos 91 anos, nosso contemporâneo neste mundo em que a migração global está em crise aguda de dimensão inédita.
Concluído o prólogo, depois de o título ter surgido superposto a um plano geral de Paris com a Torre Eiffel ao fundo, a narradora, primeiro em off e, por vezes, de corpo presente, faz o suposto paralelo entre a situação de Picasso e a dela, Mina Kavani, atriz iraniana-francesa:
(off) Em Paris, sua vida é livre e (in) anti-conformista, uma espécie de Éden. Uma Arcádia obscena, como definiu seu amigo de Barcelona, o pintor e poeta (off) Carlos Casagemas que compartilhava a mesma aventura. Era o período da boemia. Picasso é otimista e cheio de ideias, apesar de viver em extrema pobreza.
(in, olhando diretamente para a lente da câmera) Eu sei o que significa chegar de longe, de outro mundo, de outro lugar (off) e estar nesta cidade, o lugar de desejos e possibilidades. Ele, como pintor. (in) Eu, hoje, como atriz. E eu sei como é chegar aqui sendo estrangeira, sendo iraniana, deixando tudo para trás, entre o medo e o entusiasmo, para seguir sua paixão.
Na penúltima sequência do documentário, a narração retoma esse paralelo descabido e Kavani conclui de frente para a câmera, olhando para a lente:
(off) Ele [Picasso] sempre carregava consigo um grande molho de chaves. ‘É muito importante ter um’, ele dizia. Abrir as portas de suas várias (in) casas significava que ele havia criado raízes. É um sentimento agradável. É como fazer as pazes com a saudade de seu país. Eu também sonho com o meu país, o Irã, do qual estou afastada há tantos anos. E eu espero encontrar a chave que abra os caminhos de paz.
Essas comparações disparatadas comprometem o documentário como um todo e dispensam mais comentários.
Na segunda semana em cartaz, iniciada em 18 de setembro, Picasso – um rebelde em Paris estava sendo exibido em nove cidades, de Maceió a Porto Alegre, de Aracaju a Curitiba. É um circuito territorial amplo, mas de público potencial restrito, destino fatal de documentários de diversas qualidades.