Na noite de quarta-feira (20), a internet se deliciou com os áudios liberados pelo STF, oriundos do recente inquérito em que Eduardo e Jair Bolsonaro, entre outros, são investigados por coação a ministros do tribunal. Para que não nos percamos entre os memes, convém destacar alguns aspectos relevantes desses últimos achados da Polícia Federal.

O primeiro e mais importante de todos: se o ministro Alexandre de Moraes é considerado um juiz linha-dura, na avaliação das medidas cautelares contra Bolsonaro ele está sendo excepcionalmente generoso. Qualquer outro réu ou investigado que demonstrasse o mesmo comportamento, perante qualquer juízo criminal no Brasil, já estaria trancado em uma cela. Do ponto de vista estrito dos fundamentos jurídicos para uma prisão preventiva, Bolsonaro poderia e deveria ter sido preso no dia 9 de julho, quando Trump anunciou o tarifaço – medida costurada por Eduardo Bolsonaro e condicionada ao fim dos processos contra o pai. O relatório da PF divulgado na quarta-feira (20) confirma todas as suspeitas que a própria polícia, a Procuradoria-Geral da República e o STF tinham em relação ao ex-presidente – isto é, que ele havia articulado o tarifaço em benefício próprio e contra as instituições democráticas.

O álibi que Bolsonaro vinha sustentando para se distanciar da trama também se mostrou falso. Ao contrário do que ele disse inicialmente, o tarifaço não foi fruto do trabalho autônomo de seu filho “não tão maduro” e que “acerta 90% das vezes”, mas parte de uma estratégia da qual ele, Bolsonaro, estava ciente e anuente. Em uma conversa com o pastor Silas Malafaia, recuperada pela PF, o ex-presidente parece repreender o governador Tarcísio de Freitas por ter tentado dissociar as tarifas da pauta da anistia. Bolsonaro então explica didaticamente a Malafaia o que pensa, e, com isso, assume o próprio envolvimento na empreitada. “O que mais tenho feito é conversar com pessoas mais acertadas”, ele diz. “Se não começar votando a anistia, não tem negociação sobre tarifa.” E conclui: “Resolveu a anistia, resolveu tudo.”

As revelações também desmascaram a conversa fiada de que, ao pleitear anistia, Bolsonaro e seu filho pretendem salvar senhoras indefesas e trabalhadores desamparados das garras cruéis da Justiça. Isso, segundo Eduardo, não passa de uma “anistia light”. Em mensagem de texto para o pai, ele explicou que não bastava absolver “o pessoal que esteve num protesto que evoluiu para uma baderna”, referindo-se ao 8 de janeiro. Na visão de Eduardo, se Bolsonaro não fizesse pressão por uma anistia que incluísse ele próprio, os Estados Unidos dariam o caso por encerrado, não fariam novas ameaças ao Brasil e ele seria “condenado [até o] final de agosto”. Malafaia, apesar das críticas que fez a Eduardo, não parecia discordar de sua estratégia. “Toda arrombada que o Trump deu no mundo é sobre economia. Com o Brasil é sobre você, cara”, disse o pastor, num áudio enviado a Bolsonaro.

A PF mostrou também que, para se comunicar com a cúpula do governo Trump, Bolsonaro não precisa da intermediação de Eduardo, já que tem seus próprios canais. Ele travou conversas, por exemplo, com o advogado Martin de Luca, que representa o Trump Media Group no processo que a empresa move, na Flórida, contra Alexandre de Moraes. Por áudio, Bolsonaro pediu a De Luca que revisasse um documento que ele pretendia divulgar em suas redes, com o objetivo de causar impacto não só no Brasil, mas também nos Estados Unidos. “Botar nas minhas mídias, pra chegar a vocês de volta aí”, disse o ex-presidente.

A conversa com Martin de Luca ajuda a esclarecer o ponto mais contestado das cautelares que Moraes impôs a Bolsonaro: a proibição de que ele use redes sociais. A decisão foi tomada em meados de julho, quando o ex-presidente passou a usar tornozeleira eletrônica. Logo depois foi reforçada, quando Moraes constatou que Bolsonaro estava, na prática, valendo-se de perfis de terceiros para continuar se manifestando na internet. Já em agosto, como Bolsonaro teimava em desobedecer, Moraes decretou sua prisão domiciliar. O que o ministro estava dizendo, e o relatório da PF agora lhe dá razão, era que o ex-presidente tinha consciência do uso estratégico que poderia fazer das redes sociais de outras pessoas – não para divulgar suas opiniões sobre temas de interesse público, mas para criar um ambiente propício para que a coação de Trump contra o STF continuasse ou até mesmo se agravasse.

Um exemplo disso está na conversa de Bolsonaro com o deputado federal Capitão Alden (PL-BA). Mesmo sabendo que estava proibido tanto de usar as redes quanto de comparecer à manifestação marcada em Copacabana no dia 3 de agosto, o ex-presidente combinou com o deputado, de antemão, que faria uma chamada de vídeo para cumprimentar o público. “Pode ligar pra mim, na imagem”, disse Bolsonaro, fazendo em seguida uma ressalva: “Você fala, eu não posso falar, não.” Isso aconteceu dias depois de Moraes ter cobrado explicações do ex-presidente, que vinha fazendo um road show com sua tornozeleira eletrônica e se manifestando por meio das redes sociais de aliados. A bronca fazia sentido, porque Bolsonaro estava fazendo justamente o que a decisão do começo de julho o proibia de fazer: valer-se de sua presença e impacto nas redes sociais para criar condições que estimulassem sanções externas aos juízes de seu processo. 

Bolsonaro, ainda assim, esticou a corda. Depois do ato de 3 de agosto, esgotadas as advertências, Moraes decretou sua prisão domiciliar. Esse jogo de pique-pega entre juiz e réu motivou críticas ao ministro, inclusive entre formadores de opinião que não comungam com o bolsonarismo. Moraes foi acusado de exagero e de cercear a liberdade de expressão. Não é o caso, mas, de fato, suas decisões a conta-gotas ajudaram a turvar o debate. Nada disso teria acontecido se o ministro tivesse decretado a prisão preventiva de Bolsonaro em 9 de julho, quando foi anunciado o tarifaço. Na cadeia, afinal, o ex-presidente não teria redes nem celular.

O ponto, aqui, não é se Bolsonaro pode ter uma opinião e expressá-la. Sem dúvidas, pode. Mas neste contexto específico, em que ele é investigado por coagir o juiz de seu processo e por estrangular a economia do país para se livrar da Justiça, suas redes sociais são ferramentas poderosas que ele emprega com fins ilegais. Se isso já não era claro o suficiente até agora, Eduardo desenhou para nós. Numa mensagem obtida pela PF, ele aparece recomendando ao pai que fizesse uma postagem de agradecimento a Trump, a quem se refere como 01. Segundo o filho, o silêncio nas redes não seria bem visto pelo presidente americano, que poderia tomar o gesto como ingratidão e recuar. Foi nesse espírito que Bolsonaro procurou o advogado de Trump para acertar o tom do post que fez logo depois. O ex-presidente não estava “expressando sua opinião”, no sentido abstrato, mas empregando suas redes sociais para entregar o que ele e Eduardo achavam que Trump esperava receber – para que, com isso, o presidente americano continuasse coagindo a Justiça brasileira. Bolsonaro, portanto, estava realizando a parte que julgava lhe caber na empreitada transacional de coação ao STF.

Essa distinção é importante para que não se confundam críticas legítimas – que qualquer um pode fazer às autoridades públicas – com essa forma muito particular de uso ilegal de plataformas digitais por um réu com imenso poder comunicacional, um comportamento que pode, sim, ser coibido pela Justiça. Quando a forma e o conteúdo são, na verdade, o instrumento que alguém emprega intencionalmente para facilitar sanções ao juiz de uma causa que lhe interessa, esse alguém não está meramente expressando ideias, mas participando de uma ação potencialmente criminosa de coação contra esse magistrado.

É justamente por isso que Malafaia agora é investigado ao lado de Bolsonaro e seu filho. Não porque fala palavrões ou se esgoela contra o Supremo, coisas que vem fazendo há anos com total liberdade, mas porque a polícia suspeita que ele também cumpria um papel na chantagem ao tribunal – que, em setembro, dará início ao julgamento de seu amigo e aliado político. Por ora, Malafaia não foi indiciado, diferentemente de Bolsonaro que, junto com Eduardo, agora é formalmente suspeito dos crimes de coação no curso do processo e tentativa de abolição do estado democrático de direito. Aguardemos os desdobramentos da investigação.





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