Além dos dois mais usados, Glifosato e Atrazina, também Acetamiprido, Ametrina, Azoxistrobina, Carbaril, Carbendazim, Ciproconazol, Clomazona, Clorantraniliprole, Clorpirifós, Clorpirifós-metílico, Clorprofam, Difeconazol, Diurom, Flutriafol, Imidacloprido, Mecarbam, Metomil, Picoxistrobina, Pirimifós-metílico, Piriproxifeno, Propiconazol, Quinoxifeno, Tebuconazol, Tiametoxam, Triciclazol, Trifloxistrobina. Um total de 28 compostos tóxicos (11 fungicidas, 11 inseticidas e 6 herbicidas) estão presentes em diferentes doses em amostras recolhidas na área ocupada pelo povo Khisêtjê, no Território Indígena do Xingu ao longo dos últimos anos.
O monitoramento de agrotóxicos foi encomendado pelas próprias lideranças desse povo. Os indígenas há vários anos constataram muitos sinais estranhos que atribuem aos “venenos” usados nas fazendas vizinhas: afecções de pele e ardor nos olhos após o banho de rio; mau cheiro na água em tempo de chuva e no ar, quando os aviões espalham venenos nas plantações vizinhas; mudança no gosto dos peixes e das caças; náuseas; aumento de problemas respiratórios.
Os khisêtjês constituem um dos dezesseis povos que vivem no Território Indígena do Xingu – alguns deles há cerca de 1,5 mil anos, outros incorporados à região ao longo dos séculos. A área fica situada no coração do Brasil, ao Norte do Mato Grosso, e foi demarcada pela primeira vez em 1961, com a criação da Terra Indígena do Xingu, que tem 2,6 milhões de hectares (quase o tamanho do estado de Alagoas). Winti Khisêtjê, de 52 anos, é uma das lideranças do seu povo, que ele representa nas organizações indígenas no Xingu. Ele me contou sobre a contaminação do território:
O primeiro sinal que percebemos da aproximação do plantio de soja e do veneno jogado na lavoura foi uma nuvem de insetos, parecidos com pium, mas que não faz nada com a gente, acaba assentando na roça. Quando fomos saber, os caras que trabalham na fazenda explicaram que são insetos da soja. Depois começaram a surgir várias doenças, dor de cabeça. Crianças com problemas de pele, feridas que nunca apareceram antes no corpo das crianças. E uma gripe intensa, que não acabava. Depois começamos a sentir o cheiro, muito perto da gente, mesmo a uma distância de 4 km do plantio de monocultura. Tentamos dialogar com a fazenda, mas não deu muito certo. Depois disso, em 2017, nosso cacique, Kokowiriti, tomou a decisão de tirar a aldeia desse local e mudar para mais longe, mais no fundo do mato, mais distante da fazenda. Aí ele falou com o povo, nós temos que mudar, porque aqui perto não tem como continuar morando, perto da soja.
Durante mais de um ano, os khisêtjês trabalharam para levar tudo da aldeia de Ngôjhwêrê, localizada perto da divisa com fazendas de soja, para um local mais distante. E lá se foram em 2018 para a nova aldeia, chamada Khikatxi, 35 km mato adentro, numa área cercada de floresta. Mas foi imensa a decepção quando passaram a sentir sintomas semelhantes. “Quando a gente mudou para cá, a gente percebeu que, futuramente, esses desmatamentos, essa soja também iria chegar aqui, mas não tem como mudar de novo, vamos ter que ficar aqui”, diz Winti. Por isso, os khisêtjês decidiram pedir a pesquisadores que investigassem a presença dos agrotóxicos em seu ambiente.
Winti, o cacique Kokowiriti e outros líderes khisêtjês levaram a demanda ao chefe do programa de Saúde Indígena da Escola Paulista de Medicina, Douglas Rodrigues, no mesmo ano de 2018. O médico já planejava um estudo a respeito. Durante uma viagem a São Paulo para exames médicos, em 2016, o líder Afukaká Kuikuro, da aldeia Ipatse, havia pedido a Rodrigues que fizesse uma análise da presença de agrotóxicos no Xingu. Sua comunidade também reclamava de cheiros no ar em certas épocas e da mudança no gosto dos peixes. Um primeiro levantamento havia sido feito como teste entre 2017 e 2018 e comprovou a suspeita: as amostras, mesmo aquelas colhidas a dezenas de quilômetros das divisas das fazendas com a Terra Indígena do Xingu, continham agrotóxicos. Rodrigues, que há quarenta anos se dedica à parceria da faculdade com os indígenas do Xingu, apresentou um projeto de pesquisa à reitoria da universidade. Enquanto o processo corria internamente, chegou o pedido dos khisêtjês.
Quando a equipe de Rodrigues preparava uma pesquisa mais aprofundada, veio a pandemia, adiando tudo por cerca de dois anos.
O pesquisador escolhido para fazer o estudo foi Francco Antonio Neri de Souza e Lima, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), que já havia estudado no mestrado a presença de agrotóxicos em terras dos xavantes (inclusive em Mato Grosso, em várias reservas menores a Leste do Xingu). Souza e Lima fez do estudo aprofundado proposto por Rodrigues o seu trabalho de doutorado, que resultou na tese Agronegócio e contaminação ambiental por agrotóxicos no território indígena do Xingu, defendida na ENSP em 2024.
A pesquisa de Souza e Lima constatou a presença de 28 compostos químicos nas amostragens realizadas em 2023. Eles foram observados principalmente nas águas dos rios, da chuva e dos poços artesianos, que puxam a água de aquíferos subterrâneos e por isso estão associadas à pureza (em terras indígenas afetadas por garimpo, como a yanomami, em Roraima, a implantação de poços artesianos se tornou política pública para escapar da poluição dos rios por mercúrio). Os venenos agrícolas estão também em amostras de carne de peixes e caças. Em todas as amostras em que apareceram resíduos de agrotóxicos, a quantidade estava dentro dos limites permitidos pelas legislações de água potável, superficial e subterrânea.
Souza e Lima conta que uma das razões para a pesquisa foi fazer a investigação na água, porque os indígenas tomavam banho e sentiam uma série de problemas dermatológicos e oculares, como coceira na pele e irritação nos olhos depois que tomavam banho. “Além disso, há elementos ambientais que eles apontam como novos e suspeitos, como um amarelamento de algumas roças mesmo fora do contexto de seca. Isso pode estar relacionado com o uso de secantes usados nas plantações e herbicidas. Além disso, reclamam que a população de abelhas está reduzindo, impactando a produção de mel.” (O pesquisador, porém, analisou o mel e não encontrou agrotóxicos.)
Segundo Douglas Rodrigues, um aspecto preocupante já detectado nas primeiras amostras colhidas na Terra Indígena Wawi (nome oficial da área ocupada pelos khisêtjês dentro do Território do Xingu) é a presença de resíduos de agrotóxicos no leite materno. “É alarmante porque não era para ter nada, mas não tem níveis elevados. Mas a gente optou por não destacar isso na apresentação ao povo Khisêtjê. Falamos da presença no peixe, mas não nas mulheres. Porque a amamentação é fundamental.”
O professor da Unifesp também quer estudar a influência dos compostos químicos considerados desreguladores endócrinos sobre a saúde indígena, pois ele pode ser um agravante para outros efeitos produzidos pelo contato com as sociedades urbanizadas. “Esses compostos produzem propriedades estrogênicas, femininas, e androgênicas, masculinas, e provocam obesidade também. Isso é uma coisa que me deixou bastante preocupado, porque ele poderia ser um facilitador do diabetes.” Ele explica que o diabetes já é um grande problema entre os indígenas de contato mais recente, com manifestações na Terra Indígena do Xingu, inclusive entre os khisêtjês. “Já estamos vendo a amputação e a cegueira por causa do diabetes. É muito difícil você tratar e controlar diabetes em área indígena. Eu creio que, nos Khisêtjê, estamos vendo a ponta de um grande iceberg.”
Ele também constatou a presença de agrotóxicos na Terra Indígena Panará (localizada na Serra do Cachimbo, na divisa entre Mato Grosso e o Pará). Ali, ao contrário do Rio Xingu, formado por afluentes que não estão em área demarcada, o Rio Iriri nasce dentro de uma reserva biológica. Mesmo assim tem sinais de contaminação. “É preciso criar uma zona de proteção. Um raio no qual não se usa veneno porque está próximo de comunidades indígenas. É o que havia antes desse novo avanço para junto das divisas. Nada de avião, nada de nebulização, para diminuir o risco.”
Souza e Lima me disse que o que mais o preocupa é a “múltipla exposição” em que aquela terra indígena, que não usa agrotóxicos, está exposta. “Tem resultado na água de rio, na água de poço artesiano, na água de chuva e em alguns alimentos. Em todos os pontos em que colhemos amostras, em pelo menos um período do ano, apareceu agrotóxico”, afirmou. “Ou seja, tem agrotóxico em baixa quantidade, mas está chegando por diversas fontes. E a gente tem 100% das amostras de chuva com presença de agrotóxico. Em uma única amostra de água de chuva foi encontrada a maior quantidade de agrotóxicos: sete agrotóxicos.” Entre as possíveis consequências que devem ser investigadas, Souza e Lima menciona a afirmação dos indígenas de que a população de abelhas está desaparecendo e que há uma diminuição geral de insetos, sobretudo dos gafanhotos que costumavam comer.
A presença de vários compostos químicos ao mesmo tempo foi o aspecto que causou mais preocupação entre os médicos que entrevistei. Em um terço (28,6%) das amostras havia apenas um composto, mas 71,4% delas traziam dois ou mais agrotóxicos, e uma em cada vinte (5%) continha mais de sete resíduos de diferentes venenos. A exposição contínua da população indígena a esse coquetel de compostos químicos acionou o alarme. “Não há estudos sobre isso, não existe evidência científica, mas por bom senso nos parece que há, sim, uma multi-intoxicação”, diz Douglas Rodrigues.
Para saber se há estudos sobre os efeitos da exposição a um “coquetel” de compostos químicos, procurei Philip Landrigan, coordenador da Comissão para Poluição e Saúde, criada em 2017 pela revista científica Lancet. Esse grupo de trabalho formado por cientistas de vários países procura estimar os impactos da poluição na saúde e quanto isso custa para a economia das nações. Professor do Boston College, Landrigan é considerado uma das maiores autoridades científicas em estudos sobre os efeitos da poluição na saúde humana, sobretudo dos agrotóxicos. Quando falei sobre os agrotóxicos no Xingu, ele me sugeriu procurar Carmen Fróes, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sua orientanda de pós-doutorado em Boston.
Doutora em saúde pública, Froes foi bastante assertiva sobre o efeito deletério da multiexposição. Ela disse que o que mais a preocupa é a exposição crônica de baixa dose e longo prazo. “É a exposição contínua, a lógica da ‘água mole em pedra dura, tanto bate até que fura’. E essa exposição contínua de baixa dose pode ser extremamente tóxica e pode ser muito difícil diagnosticar uma relação causal a longo prazo”, afirma. “A tese de Francco aponta a presença de agrotóxico organofosforado. Você pode ter uma exposição de cinco, dez, quinze anos, em que o organofosforado é particularmente lesivo ao sistema nervoso, em particular o periférico, e ver surgir um quadro de neuropatia, de lesão, dez anos depois que a pessoa deixou de ser exposta a ele.”
São organofosforados quatro dos compostos químicos citados no início deste texto: Clorpirifós, Clorpirifós-metílico, Mecarbam e Pirimifós-metílico. Eles aparecem em 57% das amostras de alimentos contaminados na Terra Indígena Wawi.
Fróes levanta outra preocupação sobre os agrotóxicos em terras indígenas: a própria vulnerabilidade dos habitantes aos elementos típicos da sociedade industrializada. Da mesma forma que indígenas apresentam mais sensibilidade ao álcool e ao açúcar, a exposição a produtos químicos pode resultar em impacto maior. “Os povos indígenas têm um hábito alimentar que não é de grande quantidade de açúcar. Eles não têm preparo orgânico histórico, que vai de pai para filho, para lidar com esse açúcar. É o que estudamos na epigenética: quanto algum fator do ambiente vai alterar a expressão dos genes”, explica. “Se eu tenho uma população acostumada a comer açúcar, ela vai ter um nível de produção de insulina – que é o hormônio que metaboliza o açúcar – diferente de uma população que não tem essa exposição ao açúcar. Então, existe uma base teórica para se explicar uma maior suscetibilidade de povos específicos a fatores de risco do ambiente, incluindo os resíduos, os compostos químicos.”
Entre os compostos químicos aos quais os indígenas estão expostos de forma crônica, Douglas Rodrigues alerta para herbicidas que têm efeitos sobre o sistema hormonal de animais, como a Atrazina, que ele chama de “desregulador endócrino”. O herbicida foi encontrado em 100% das amostras de água da terra indígena pelo pesquisador Tiago Cerqueira para o Levantamento do Uso de Agrotóxicos nas Cabeceiras do Rio Xingu e Monitoramento das Águas do Parque Indígena do Xingu, seu trabalho de mestrado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), apresentado em 2018.
A Atrazina, herbicida muito usado e o segundo mais vendido globalmente para culturas de milho, foi objeto de grande polêmica nos Estados Unidos, como contou uma reportagem da revista The New Yorker (publicada na piauí, em outubro de 2014, com o título Sapo de fora não chia). Na matéria, a jornalista Rachel Aviv conta como o cientista Tyrone Hayes, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, um dos principais especialistas em anfíbios, foi contratado pela empresa Syngenta para estudar os efeitos de seu agrotóxico Atrazina em sapos. Em algum momento, ele comunicou à empresa que estranhava os resultados que obteve no laboratório, porque parecia que os sapos mudavam de sexo. Pediu mais tempo para checar os dados. A partir de então, percebeu que a companhia passou a atacá-lo, às vezes explícita, às vezes veladamente. Ao final, ficou provado que a empresa tentou por várias frentes de ataque desacreditar seu trabalho.
Entrevistei Hayes para esta reportagem, e ele me contou que desde a matéria da New Yorker, que deu grande exposição ao caso, o laboratório não o assediou mais. O cientista define como “desmasculinização” o impacto que detectou do produto sobre os sapos. “A Atrazina reduz a produção de testosterona e aumenta a produção de progesterona, o chamado hormônio feminino. Portanto, tem o efeito de alterar o sistema hormonal dos anfíbios, causando a desmasculinização”, explicou. Perguntei se o efeito altera as características sexuais secundárias dos animais, e a resposta foi ainda mais alarmante: “Não são apenas os caracteres sexuais secundários que são afetados. Nos anfíbios, o efeito é ainda mais radical: o animal geneticamente masculino desenvolve ovários.”
Enquanto Hayes duelava com a empresa, surgiram nos Estados Unidos sinais de transtornos hormonais em humanos. Perguntei ao cientista se em suas pesquisas havia indicação de que tais efeitos poderiam ocorrer em indígenas expostos à Atrazina, devido ao consumo de peixes contaminados com o composto químico. Ele recusou a hipótese: “Não existem registros de efeitos em humanos devido ao consumo de produtos agrícolas ou de animais. As ocorrências relatadas na New Yorker sobre efeitos em humanos foram entre pessoas que estavam expostas diretamente ao veneno através da pele ou que consumiam água contaminada pela plantação em doses mais altas. Mas o leite, sim, o leite de vacas contaminadas pode transferir Atrazina para o consumidor humano.”
O médico pediatra Sergio Graff, de 65 anos, mestrando em toxicologia na USP, me foi indicado pela associação CropLife Brasil como um pesquisador que poderia contestar os dados sobre intoxicação dos indígenas por agrotóxicos. A CropLife Brasil representa entidades e empresas do agronegócio, inclusive as produtoras de “defensivos químicos” ou agrotóxicos. Na carreira de pediatra, Graff se concentrou nos casos de intoxicação, foi chefe da área no Hospital Municipal do Jabaquara, centro público de atendimento a crianças, em São Paulo, e presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia. Atualmente dedica-se a uma empresa de consultoria que atende associados da CropLife (ele disse que não pode nomear que companhias são estas).
Graff aceita que, como aponta o estudo de Souza e Lima, haja ocorrência de compostos químicos no Território Indígena do Xingu. Ele também reconhece o problema, tanto mais em uma área de preservação, onde os indígenas não utilizam nem querem esses produtos. Mas diz que o estudo mostra que os índices de intoxicação estão sempre abaixo dos limites previstos pelas legislações brasileiras e que a exposição de longo prazo a doses baixas de vários compostos químicos (a multi-intoxicação) obedece também a limites legais. Esses limites, segundo ele, são baseados em pesquisas que simulam a exposição de longo prazo. “Quando se fala de exposição crônica, é feito o teste crônico: ele estima a metade da vida do ratinho, e a exposição ao produto é repetida todos os dias até metade da vida do ratinho. E então se chega a uma conclusão”, ele diz. “Se a gente não acreditar na toxicologia, a toxicologia deixa de ter sentido.”
Graff afirma que desconhece estudos sobre exposição múltipla a diferentes compostos químicos, mas comenta que, diferente da legislação brasileira, as leis internacionais contemplam essa possibilidade. “A legislação da União Europeia ou a do Reino Unido define um limite máximo de resíduo em água potável para a substância isolada e um segundo limite quando tem mais de uma substância”, afirma.
Sobre a ocorrência de Atrazina nas amostras de água do Xingu, ele diz: “Quando você aponta essa presença, você sinaliza que há um perigo. Mas qual é o risco de ela produzir uma disrupção endócrina [como a constatada pelo americano Tyrone Hayes]? Depende de alguns fatores. O primeiro deles é a dose. Em que dose ela é um disruptor endócrino? Com certeza, é acima do limite máximo de resíduo estabelecido pela Organização Mundial da Saúde.”
É um saber antigo, atribuído ao médico Paracelso (no século XVI), que a diferença entre o remédio e o veneno está na dose. Por isso, os órgãos de vigilância sanitária em todo o planeta têm a incumbência de limitar as quantidades dos compostos químicos para que eles manifestem sua vocação para remediar um problema sem envenenar as pessoas e o ambiente. No entanto, frequentemente se detecta que esses Valores Máximos Permitidos (VMP) são excessivos.
No caso da Atrazina, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) estabelece um nível máximo de contaminantes (MCL) de 3 microgramas por litro ou 3 partes por 1 bilhão para a água potável. Perguntei ao cientista Tyrone Hayes qual quantidade do composto pode perturbar o sistema hormonal dos animais. “No laboratório, usamos 0,1 partes por 1 bilhão, que é 1/30 da quantidade permitida pela EPA para água potável.” E bastou essa proporção para já obter o efeito descrito de desenvolvimento de ovários em animais com genes masculinos.
O empresário José Ricardo Rezek, de 73 anos, é proprietário de uma fazenda vizinha à terra dos khisêtjês. Os líderes indígenas dizem ter estabelecido com ele um relacionamento cordial, que deixou de existir quando a terra foi arrendada para uma nova administração. O empresário explica que sua família, visando dobrar a área de plantio de soja, milho e algodão, se associou a investidores em uma joint-venture de arrendamento de terras. Uma nova empresa passou a gerir sua propriedade.
Rezek, que comanda o grupo RSK, se estabeleceu no entorno da Terra Indígena do Xingu em 1980. Era um tempo sem regras. “Nós desbravamos sem políticas governamentais. Não sabíamos se podíamos desmatar até a beira do rio, se tinha que deixar uma faixa [preservada]. O governo dizia: ‘Tem que povoar a Amazônia, senão os americanos vão tomar.’ Então, fomos todo mundo para lá”, ele conta. “Não sabíamos que não podíamos desmatar até a beira do rio. Depois, a legislação felizmente evoluiu, e hoje temos as proteções de nascentes, as áreas de proteção permanente e tudo mais. Hoje, o agronegócio não aceita mais qualquer transgressão ao código, não aceita nada que se desalinha com as políticas governamentais.”
Ele diz ter consciência de que os agrotóxicos atingem as terras vizinhas preservadas, ao serem espalhados, ameaçando, por exemplo, a certificação orgânica de alimentos como mel, azeite de pequi e farinhas que os khisêtjês produzem: “Eu seria muito leviano de dizer que isso não possa ter ocorrido, mas hoje a aplicação do avião tende a diminuir, vem diminuindo muito, porque a tecnologia caminha para pulverizadores de altíssima tecnologia embarcada.”
O empresário afirma que o avião que pulveriza agrotóxicos tem sido usado apenas em emergências, pois dispõe agora de antenas 5G para guiar a pulverização. “Além de evitar desperdício, com isso nós já estamos minimizando qualquer problema futuro. Por exemplo, antes jogava 3, 5 litros por hectare. Hoje, com sensor e tecnologia, despeja 0,2 ou 0,3 litro por hectare. Só aplica o estritamente necessário. E está chegando essa nova tecnologia, saída dessas guerras todas, os drones. Você levanta um drone, o drone mapeia, você vê que tem uma infestação de 7 hectares, ele vai espalhar apenas nos 7 hectares”.
Os khisêtjês, porém, reclamam do uso intensivo dos aviões, que aparece em filmagens feitas pelos indígenas. Quando viajei entre Canarana, município de Mato Grosso, e a área mais ao Sul do Território Indígena do Xingu também testemunhei aviões espalhando o veneno por grandes áreas de plantio de soja.
No final de julho, um tronco pintado e adornado com a figura de um homem será velado na aldeia de Ipavu por toda uma noite por indígenas kamaiurás e visitantes de outros povos da Terra Indígena do Xingu. Na manhã seguinte, o tronco, que é a representação do líder Kotok, morto em 2024 por problemas de pulmão que o perseguiram por vários anos, será jogado ritualmente nas águas da lagoa que dá nome à aldeia. Começarão as lutas chamadas de huka-huka, quando homens da aldeia anfitriã enfrentam os visitantes de todas as aldeias vizinhas, um povo por vez. Os vencedores receberão os adereços do líder encarnado no tronco.
A cada ano, as aldeias do Xingu promovem festas como essa para celebrar os líderes que se foram no ano anterior. Kotok morreu sem ver realizado o desejo de entender os níveis de contaminação de sua terra pelos venenos das fazendas, como ele me disse em um encontro pouco antes de morrer, na frente da sua casa, na grande praça central da aldeia Ipavu. Ali, paramentado com os adereços típicos de guerreiro, ele desabafou:
O veneno na água causa a maior dificuldade para nós. Quando chove, o veneno da soja que o fazendeiro planta vai todo para a lagoa, para o Rio Culuene [afluente do Xingu]. Então pega muito veneno, o peixe está morrendo. Porque o nosso supermercado é o que a gente pesca, o peixe. Depois de tomar água do Culuene, dá diarreia, a gente fica doente. Eu não gosto desse tipo de coisa, do desmatamento, porque a floresta é o coração nosso, ela que traz as coisas espirituais para nós.
A possibilidade de que suas “compras” pudessem estar contaminadas o assustava. Conheci Kotok naquela mesma aldeia em 2020, em uma visita para gravar seu depoimento para a exposição do projeto Amazônia, do fotógrafo Sebastião Salgado. Ele já reclamava do veneno e pedia que fossem feitos estudos para avaliar a qualidade da água.
Quando voltei a encontrá-lo, quatro anos depois, o cacique vinha de uma internação hospitalar em Canarana e estava ansioso com as ameaças. Além do cheiro de veneno na água, nos peixes e no ar, nos últimos dois anos surgira um agravante: as roças não produziram a mandioca como antes. Era uma consequência dramática das mudanças climáticas que afetam a região. A drástica mudança no regime de chuvas e a temperatura alta em níveis inéditos estão matando as plantas de mandioca: quando os indígenas cultivam na época tradicional, a seca não permite que a mandioca nasça; quando esperam a chuva, o calor é tanto que “cozinha” as raízes. Há três anos, a produção vem caindo vertiginosamente.
Esse efeito visível das mudanças climáticas sobre as roças de mandioca não afeta apenas os xinguanos. Ao longo dos últimos quinze anos, tenho ouvido relatos muito semelhantes em diferentes regiões da Amazônia: de ashaninkas, no Acre (quase na fronteira Sul com o Peru), de baniwas (no Rio Içana, na chamada Cabeça do Cachorro, no extremo Norte do Amazonas, junto à fronteira da Colômbia) e de macuxis (na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, de onde se vê a fronteira com a Guiana).
No entanto, o impacto dessa disfunção na produção do alimento por excelência dos indígenas brasileiros é particularmente dramático para os indígenas do Alto Xingu, cuja dieta é composta basicamente de mandioca e peixes. Só eventualmente eles recorrem a pequenos animais e frutas, pois as caças são vetadas por tabus míticos. Com menos peixes e falta de polvilho de mandioca, os xinguanos passam fome.
O drama dos khisêtjês com os agrotóxicos – desde que começaram a se sentir incomodados pelos sinais de veneno, a mudança para a aldeia nova e a pesquisa feita por Francco Souza e Lima – foi contada no documentário Sukande Kasáká – Terra doente, produzido pela Associação Indígena Khisêtjê, com direção de Kamikiá Khisetje e Fred Rahal. Assim que ficou pronto, antes mesmo de ser apresentado ao “povo da cidade” – como o xamã Yanomami Davi Kopenawa se refere aos não indígenas –, o filme foi mostrado para a comunidade. O objetivo era explicar aos indígenas a pesquisa de Souza e Lima e a relação entre alguns dos sintomas que eles têm manifestado e os agrotóxicos.
No segundo semestre deste ano, Kamikia vai mostrar Terra doente às lideranças de outras comunidades, na Assembleia da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix). O documentário vai ser usado para divulgar os indícios da contaminação e a necessidade de contenção dos efeitos dos agrotóxicos nas fazendas vizinhas, como me explica o cacique Kokowiriti:
No começo deste ano recebemos o resultado da pesquisa. Agora pensamos em compartilhar com as lideranças aqui do Xingu, para eles nos ajudarem. Nosso plano é levar essas conclusões para a governança do Xingu para ter mais força das lideranças para a gente ir a Brasília. Vamos fazer seminário dentro do Congresso, com as lideranças do Xingu, para mostrar esse vídeo e tentar barrar esse veneno tão perigoso que os fazendeiros estão usando aqui no Brasil.
Os indígenas têm recorrido ao audiovisual para falar de sua cultura e seus problemas desde que o cacique Mário Juruna Xavante utilizou o videocassete nos anos 1970, ferramenta que o ajudou na sua eleição a deputado, em 1982. Fotógrafo profissional desde 2000, Kamikia Khisêtjê, de 41 anos, teve iniciação em audiovisual no projeto Vídeo nas Aldeias, criado em 1986 pelo cineasta Vincent Carelli, que formou documentaristas indígenas em todos os cantos do Brasil. Em 2015, Kamikia realizou A Última Volta do Xingu, sobre o esgotamento de parte do curso do Rio Xingu na chamada Volta Grande, depois da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte. Esses filmes são parte de uma intensa produção audiovisual feita por indígenas atualmente. No Xingu, outro cineasta conhecido é Takumã Kuikuro, diretor, com Carlos Fausto e Leonardo Sette, dos documentários As hiper mulheres (2011), sobre jovens mulheres kuikuro que buscam preservar os cantos tradicionais da festa feminina Yamurikumã, e A febre da mata (2022), a respeito dos incêndios florestais na região.
Os agrotóxicos não são a única ameaça à saúde dos habitantes do Território Indígena do Xingu. Também a prática de garimpo, bastante comum na Amazônia, tem aumentado a concentração de mercúrio em suas águas, como mostra um estudo recente, Avaliação da contaminação por mercúrio em peixes de consumo do Alto Xingu, feito pela pesquisadora Sandra Hacon, da ENSP/Fiocruz. A pesquisa constatou, como no caso da tese de Souza e Lima, que, além das concentrações específicas detectadas em cada instante, há um importante efeito de acumulação de mercúrio, exatamente por serem os peixes a fonte principal de proteínas da dieta xinguana.
Mercúrio é um metal pesado que se apresenta em estado líquido quando em temperatura ambiente. Com grande capacidade de se amalgamar a outros metais, ele é usado no processo de purificação do ouro: primeiro é acrescentado aos sedimentos em que o ouro aparece misturado ao solo, formando uma massa, a uma razão aproximada de 1 grama de mercúrio para cada 1 grama de ouro. Depois, os dois vão ser separados por uma forma de destilação. Como evapora a uma temperatura menor do que aquela em que o ouro derrete, quando exposto ao fogo ou um maçarico, o mercúrio – associado a matéria orgânica ou impurezas – flutua no ar como uma fumaça preta (que os yanomamis, acostumados a ver o processo nos garimpos tão comuns em sua terra, chamam xawara, que define tanto a fumaça quanto os maus espíritos que ela representa). Apagado o fogo, a temperatura cai e o ouro se torna uma pepita purificada. Parte do mercúrio evaporado volta ao estado líquido e é descartado na natureza em inúmeras gotículas.
Os garimpeiros podem sofrer males respiratórios por inalar o mercúrio espalhado no ar. Depositado no leito dos rios, o metal pesado será transformado por bactérias em uma outra substância, o metilmercúrio, que entra na cadeia alimentar ao ser consumido por peixes. Ao comerem os peixes, os humanos ingerem o metilmercúrio, que é muito tóxico: pode causar alterações na pressão sanguínea e no sistema nervoso, provocando problemas de visão e audição, de equilíbrio, paralisia, dificuldades para falar e até na cognição. Durante a gestação, pode causar problemas ao feto, como paralisia cerebral.
A esse conjunto de males se dá o nome geral de “doença de Minamata”, em referência à localidade litorânea do Japão onde uma empresa despejou por muitos anos metilmercúrio diretamente no mar, provocando inúmeros casos da doença nos anos 1950. Casos típicos do mal que afetou a população japonesa estão acontecendo no Brasil entre o povo Munduruku, como mostram os estudos do neurologista Erik Jennings, retratado no documentário Amazônia: a nova Minamata?, de Jorge Bodanzky (2022). Há suspeitas de que o mesmo esteja ocorrendo entre yanomamis.
No caso do Xingu, não há casos detectados, mas o estudo de Sandra Hacon encontrou altas doses de metilmercúrio em peixes carnívoros como bicuda, cachara, cachorra, corvina e pirarara. Os limites máximos tolerados (LMT) de mercúrio em peixes e produtos de pesca é de 0,5 mg/kg. As amostras de bicuda superaram esse teto (0,63mg/kg), enquanto os outros ficaram entre 0,4 e 0,5 mg/kg. Já os peixes não carnívoros ficaram sempre abaixo. Um dos principais rios que cruzam o território do Xingu é o Culuene: seus peixes contêm mais mercúrio nas amostras do que os demais. O estudo de Hacon recomenda a redução do consumo de bicuda pelos xinguanos.
O Xingu foi a primeira reserva indígena multiétnica do Brasil, concebida para abrigar diferentes povos que viviam ali. Quando os irmãos Villas Boas, em 1952, durante o governo de Getúlio Vargas, se reuniram com o vice-presidente Café Filho para discutir o projeto de um futuro Parque Nacional do Xingu (como foi chamado na época), seu traçado incluía as nascentes dos rios da bacia do Xingu, no ponto central do país.
Nos anos seguintes, o governo de Mato Grosso concedeu inúmeros títulos de concessão de terras para fazendas se instalarem dentro do território previsto para o parque. Quando Jânio Quadros decretou enfim sua criação, em 1961, todas as nascentes do Rio Xingu ficaram de fora. A terra indígena também deixou de fora o centro geográfico do país (hoje na Terra Indígena Capoto Jarina, onde mora o cacique Raoni Metuktire).
Hoje, essa incongruência cobra a conta na forma de um processo de exploração intensiva que começa fora do território e leva para dentro dele seus detritos na forma de venenos da atividade agrícola. O coração do Brasil está sendo contaminado por agrotóxicos.