Entre os doze longas ou médias-metragens exibidos, em abril, na competição internacional do 30º Festival É Tudo Verdade, o júri formado pelo documentarista e professor Andrés Di Tella, o professor e scholar Bill Nichols e a cineasta Eliza Capai atribuiu o prêmio de Melhor Documentário a Escrevendo Hawa, produção conjunta da França, Países Baixos, Catar e Afeganistão. O filme é codirigido pelo casal de irmãos estreantes Najiba e Rasul Noori, filhos de Hawa – a protagonista afegã de 53 anos, decidida a se alfabetizar após não lhe ter sido permitido ir à escola, nem se tornar uma mulher independente.
A justificativa dos jurados para a premiação, conforme noticiou O Globo, foi que “poucos filmes contam a história de uma nação por meio do amor e da compaixão que definem uma família imersa em uma cultura patriarcal – mas não limitada por ela. A cineasta [Najiba] narra a luta excepcional de sua mãe por independência no Afeganistão, onde conquistas como essa raramente são celebradas.”
Em 2024, no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), o júri da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci) declarou orgulho em premiar Escrevendo Hawa, escolhido entre dez filmes realizados por diretores estreantes de países diferentes, por “conseguir adicionar muitas camadas políticas e emocionais ao tratar de questões familiares. A diretora do filme vencedor se inspirou na urgência da situação local, que teve grande influência no futuro das protagonistas que são membros próximos de sua família. O filme nos oferece um testemunho essencial de um território onde as liberdades estão em jogo, especialmente para as mulheres…”
Sem ter podido assistir a todos os filmes exibidos na competição internacional do É Tudo Verdade, seria temerário que eu opinasse sobre a premiação. Escrevendo Hawa tem, sem dúvida, grandes méritos. Mesmo assim, convém lembrar que o prêmio de Melhor Filme expressa apenas o ponto de vista do trio Di Tella – Nichols – Capai. Daí deveria ser obrigatório mencionar os nomes dos jurados quando um prêmio é atribuído – tanto ao ser anunciado e divulgado, como já ocorre em geral, quanto, de modo especial, nos troféus que acompanham láureas e costumam trazer, gravados em metal, quando muito apenas o nome dos premiados. Desse modo, ficaria explícito a quem cabe a responsabilidade pela atribuição do prêmio e, ao menos para bons entendedores, o valor relativo de toda premiação decidida por júris de festivais competitivos.
Entre os outros três filmes da competição internacional do É Tudo Verdade a que pude assistir, pelo menos um – A invasão, de Sergei Loznitsa – não merecia passar em branco entre nós, como me parece ter ocorrido. Após estrear, em 2024, na mostra oficial do Festival de Cannes, em sessão especial fora da competição, o filme foi exibido mundo afora em diversos outros festivais. Apresentado como “imenso cineasta e mestre documentarista” em entrevista à Fred – The Festival Insider, uma rádio londrina online, Loznitsa reúne em sua extensa filmografia, além de documentários, três filmes de ficção. O mais recente – Dois promotores – participa, em competição, do Festival de Cannes deste ano. Os premiados serão anunciados no próximo sábado, 24 de maio, na cerimônia de encerramento.
Não se trata aqui de pretender indicar qual dos dois filmes é o melhor – Escrevendo Hawa, dos estreantes irmãos Noori, ou A invasão, do consagrado veterano Loznitsa. Pelo contrário, o que se quer é justamente reiterar que as qualidades próprias de ambos os tornam incomparáveis entre si, mesmo tendo aspectos comuns – gravar cenas da vida cotidiana em seus respectivos países –, embora adotem procedimentos de linguagem divergentes em face da volta ao poder do Talibã no Afeganistão, em 2021, e da invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022.
No caso da Ucrânia, Loznitsa declarou, na mesma entrevista, não ter interesse “em mostrar o inimigo – ele nunca aparece no filme: é o resultado de suas ações que aparece e podemos vê-los em cada minuto desse filme. Podemos sentir que esta guerra existe em todos os lugares e influencia a sociedade e a transforma, e isso é o que me interessou: como as pessoas encontram força e capacidade, vontade e dignidade, para se proteger e resistir nessas circunstâncias. E também, você pode ver abertamente que é impossível derrotar este povo, impossível! […] As pessoas resistirão até o último momento de suas vidas e isso transmite uma forte emoção e uma forte imagem de uma nação. Eu queria mostrar o povo ucraniano como uma nação, porque esta nação está sendo criada agora, está sendo construída agora, neste conflito – infelizmente, sempre aconteceu assim na história da humanidade: as pessoas se uniram durante as guerras, enfrentando uma agressão, contra algum inimigo […]. Isso é lamentável, eu preferiria uma maneira melhor de construir uma nação do que essa, mas era isso que eu queria mostrar”.
Cena de A invasão (Crédito: Divulgação)
Cena de A invasão (Crédito: Divulgação)Najiba declarou ao portal Cineuropa, por sua vez: Hawa “não se sentia desconfortável com a câmera porque era eu que estava atrás dela e sou sua filha. Em vez [de causar desconforto], a câmera nos aproximou muito. Dia após dia, eu ouvia suas histórias: nos tornamos como amigas íntimas. Ela compartilhava tantas emoções e experiências pessoais que eu nunca tinha ouvido falar antes. Há uma cena em que ela fala sobre amor. Eu não sabia que minha mãe, quando teve dois dos meus irmãos, Hussain e Zaher, estava apaixonada por alguém. Depois de quarenta anos, ela está chorando por esse amor que não pôde ter por causa dos filhos, por causa do marido. Então, lentamente, acho que a câmera se tornou parte da família”.
Escrevendo Hawa é centrado na família Noori. Capta a relação pessoal, íntima, dos filhos que gravam (Najiba e Rasul) com a mãe que é gravada (Hawa). Já em A invasão, Loznitsa observa à distância, de Berlim, sem ter contato direto nem estabelecer interação pessoal alguma com quem está diante da câmera ou com o que está acontecendo e sendo gravado na Ucrânia.
Em um caso, a dramaticidade da situação e a emoção transbordante envolvem quem está sendo gravado, os que estão gravando e o espectador. No outro, o distanciamento resultante da disciplina autoimposta de não intervir leva quem assiste a refletir sobre o significado do que está vendo.
No final de Escrevendo Hawa, a última legenda informa que, “em 2024, sob o regime do Talibã, o Afeganistão continua sendo o único país do mundo onde mulheres e meninas não têm direito a educação.” Mortes e destruição, causadas pela guerra resultante da invasão russa, prosseguiam na Ucrânia, em abril de 2025, enquanto A invasão era exibido no Festival É Tudo Verdade, em São Paulo e no Rio de Janeiro – prova de que tanto o documentário de Najiba e Rasul Noori quanto o de Loznitsa preservam a virtude de se manterem atuais, um valor básico do gênero documental.
A lamentar apenas o fato de Escrevendo Hawa e A invasão, que eu saiba, não estarem acessíveis para serem vistos no Brasil.