Em uma terça-feira quente de março, Lula viajou a Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, para inaugurar um centro de tecnologia em uma fábrica de carros. Operários, empresários e ministros sorridentes posaram para fotos com o presidente. Só não sorriram os militares responsáveis pela segurança de Lula, que suavam de preocupação. Não havia uma ameaça clara à integridade do chefe máximo da República nem qualquer sinal de hostilidade no entorno do prédio. Em vez disso, estava lá uma funcionária da fábrica – muito solícita, com os cabelos tingidos de loiro – que insistia em oferecer copos d’água e café para Lula. Era uma recém-contratada e, por isso, os seguranças não haviam tido tempo de investigar sua vida pregressa e julgar se era apta a servir o presidente. A mulher teve de ser barrada.

Situações desse tipo não são novidade para os integrantes da Secretaria de Segurança Presidencial, um dos braços mais importantes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que protege presidentes brasileiros desde 1938. Dentro da secretaria, alguns militares são lotados na Coordenação-Geral de Avaliação de Risco e Apoio Policial, que tem como missão prevenir toda possível ameaça à vida do mandatário. Preocupam-se com atentados violentos (por isso o presidente só desce do carro em lugares fechados) e envenenamentos.

“É função dessa coordenação fazer uma lista de pessoas que terão acesso ao presidente, direta ou indiretamente, e levantar informações. Por exemplo, quem são os cozinheiros do evento, quem são os fornecedores do catering, quem terá acesso direto à cozinha”, diz um militar que atua na segurança de Lula e, pela natureza sigilosa do trabalho, pede para não ter seu nome identificado. As preocupações alimentares aumentaram depois que a Polícia Federal revelou, no fim do ano passado, um plano para matar Lula por envenenamento (o que causaria, nas palavras dos militares conspiradores, o “colapso orgânico” do presidente recém-eleito).

“Não existe um provador oficial do governo, como na época dos reis. Há países que têm, mas aqui, não. Não é necessário”, diz o mesmo segurança do presidente. Ao todo, 27 integrantes do GSI participaram do planejamento da viagem a Betim, iniciado com um mês de antecedência. No vocabulário palaciano, essas comitivas são chamadas de Escav – Escalão Avançado. Cabe a elas planejar a rota que o presidente fará quando chegar à cidade, reunir-se com os representantes locais e detectar brechas na segurança. A equipe também incluiu médicos, que ficaram de prontidão para atender eventuais reações alérgicas e intoxicações alimentares.

“Em eventos externos é preciso pensar em tudo”, diz outro integrante da equipe de segurança de Lula, também sob condição de anonimato. “Em época de campanha, por exemplo, é necessário calcular quais pontos são interessantes para a hidratação do presidente e em quais outros é melhor esperar. Tudo na vida é logística, se você pensar direito.” Dependendo da magnitude do evento, essas etapas de planejamento podem envolver até quinhentas pessoas.

Os militares destacados para trabalhar na segurança pessoal do presidente passam por um treinamento de “segurança de dignitários”. Estudam disciplinas como doutrina da segurança presidencial e direito aplicado à segurança presidencial; treinam lutas, tiro ao alvo, salvamento aquático, prevenção contra atentados e atendimento pré-hospitalar; e aprendem a desempanhar certas atividades de inteligência específicas da função. Os candidatos devem obter um índice de 45 pontos na Avaliação de Habilidade no Tiro, realizada com uma pistola calibre 9 milímetros. Os que almejam trabalhar como motoristas do comboio presidencial também devem passar por uma bateria específica de exames, incluindo a prática de manobras arriscadas em um simulador.

Mas é preciso, além dessas qualificações, ter uma patente mínima e algumas características físicas. Se o militar for do quadro de oficiais – isto é, se tiver diploma de ensino superior –, precisará ser major ou capitão para atuar na segurança pessoal do presidente. Se estiver entre os praças – militares com ensino fundamental ou médio –, precisará ter, no mínimo, a patente de sargento aperfeiçoado. É o que define a portaria interministerial 1.897, publicada em abril de 2024, que substituiu a anterior, de 2006. Ela também determina que os motoristas devem ter, de preferência, ao menos 1,65 metro de altura e uma carteira de habilitação na categoria D, que permite dirigir veículos de transporte de passageiros com mais de oito lugares, como ônibus, micro-ônibus e vans. Precisam, além disso, ter histórico de bom comportamento.

O exame médico dos candidatos é rigoroso. São desclassificados homens e mulheres que tiverem “varizes acentuadas dos membros inferiores” ou cicatrizes que possam “motivar qualquer perturbação funcional ou ulcerar-se”. Nem a arcada dentária é poupada do escrutínio. Os militares da segurança presidencial não podem ter “menos de seis molares opostos dois a dois” – mas “tolera-se” dentes artificiais, como coroas e pontes dentárias.

Homens devem ter, preferencialmente, altura mínima de 1,70 metro; mulheres, de 1,60 metro. Embora os militares ouvidos pela piauí neguem que haja diferença no tratamento a homens e mulheres, elas devem atender a um número maior de exigências médicas. A portaria do GSI lista sete critérios de natureza gineco-obstétrica, como gigantomastia (mamas grandes) e “sangramento genital anormal”, que podem barrá-las da segurança pessoal do presidente.

Lula, onde quer que esteja, em Pequim ou em São Paulo, no ar ou em terra firme, anda sempre acompanhado de cinco oficiais do GSI. São os militares da segurança imediata, que convivem diariamente com o presidente, participam de todos os seus compromissos e até dormem no Palácio da Alvorada. Se forem oficiais, podem permanecer nesse cargo por até três anos; se forem praças, por até quatro. O mais comum, no entanto, é que as equipes sejam renovadas anualmente. “Isso é bom para os oficiais, que podem ter um pouco de vida pessoal, e é essencial para a segurança do presidente”, diz uma oficial que conversou com a piauí.

O responsável por essa diminuta equipe é, atualmente, Wallace Manaro Silva. Tenente-coronel de Infantaria do Exército, ele assumiu o cargo em fevereiro. É um homem discreto, sem rastros em redes sociais. Quem procurar por seu nome no Google não encontrará foto alguma; seu nome e cargo constam no site da Presidência, mas sem qualquer informação sobre seu currículo. Manaro ganhou a confiança de Lula quando cuidou do escritório regional do GSI em São Paulo, na época em que o petista já tinha deixado a presidência. (Ex-presidentes e suas famílias têm direito à segurança oferecida pelo GSI.)

Depois da equipe de segurança imediata, há duas outras: a aproximada e a afastada. A primeira cuida do perímetro dos locais onde o presidente se encontra e é composta por militares das Forças Armadas. A segunda é responsável pelo policiamento em áreas externas e nos deslocamentos do comboio presidencial. Essa equipe é formada pelo Exército e outras instituições como Polícia Militar, Polícia Civil, empresas de segurança privada e Detran.

O ministro-chefe do GSI é o general Marcos Antonio Amaro dos Santos. Ele assumiu o cargo em maio de 2023, um mês depois da saída do general Gonçalves Dias, que foi filmado interagindo de forma amigável com os invasores do 8 de janeiro. A gravação, assim como o fato de que a segurança presidencial pouco fez para conter a turba, reforçou a impressão de que o GSI havia sido conivente com a invasão. Nos corredores do Planalto, comenta-se que Lula foi pego de surpresa pelo comportamento de G Dias, como o general é conhecido. Já a primeira-dama e Flávio Dino, então ministro da Justiça e Segurança Pública, “torceram a cara, do tipo ‘já sabia’”, segundo relata um oficial que acompanhou o desenrolar da crise.

Em abril daquele ano, antes que Amaro assumisse o GSI, o governo fez uma limpa. O ministro interino, Ricardo Cappelli, demitiu 87 servidores do órgão de inteligência em apenas dois dias. Janja, mesmo assim, ainda se recusa a ter integrantes do GSI na sua equipe de segurança, composta só de policiais federais. “Ela já não gostava [do GSI]. Com o Bolsonaro, passou a desconfiar. E depois do 8 de janeiro, ficou com ojeriza”, diz esse mesmo oficial.

Sob o comando do general Amaro, o GSI tem vivido tempos mais tranquilos. Natural de Motuca, no interior de São Paulo, ele é considerado um homem calmo, organizado e de natureza conciliadora. Bate ponto no segundo andar do Palácio do Planalto, um abaixo do gabinete de Lula. À piauí, o general afirmou que, apesar do espanto com as revelações da Polícia Federal sobre os planos para assassinar Lula, Alckmin e o ministro do STF Alexandre de Moraes, não houve alterações drásticas no modus operandi do GSI. “Não há necessidade de mudança. Os fundamentos para a segurança são os mesmos e são uma referência inclusive para outros países”, ele afirmou. “O que houve foi um aperfeiçoamento do que já fazíamos.”

Mas houve mudanças, ao menos materiais. Se antes do 8 de janeiro o governo dispunha de sessenta câmeras de segurança cobrindo as áreas do Palácio da Alvorada, do Palácio do Planalto, do Palácio do Jaburu e da Granja do Torto, hoje dispõe de 627. Outras 81 aguardam para serem instaladas. A qualidade das imagens está mais nítida e foi ampliado o tempo padrão de arquivamento das filmagens (se antes elas ficavam salvas na “nuvem” por apenas treze dias, agora ficam por seis meses). Só nesse maquinário foram investidos 8,4 milhões de reais. A blindagem dos vidros no térreo do Palácio do Planalto já foi aprovada pelo Iphan e custará 11,7 milhões de reais (a obra era prevista para o ano passado, mas atrasou). Também devem ser feitas adaptações nas guaritas do Palácio da Alvorada e da Granja do Torto.

Amaro é general da reserva e atuou durante anos na segurança da então presidente Dilma Rousseff, acompanhando-a com frequência nas pedaladas matinais em Brasília. Foi secretário de Segurança da Presidência da República e chefe da Casa Militar. Em 2015, uma reforma ministerial fez com que o GSI perdesse o status de ministério e fosse integrado à Secretaria de Governo, sob a responsabilidade de Amaro. Foi quando o general decidiu escrever uma cartilha detalhando o funcionamento do GSI. A intenção, segundo ele, era reforçar a importância do órgão. O documento andou esquecido, mas recentemente ganhou uma nova edição revisada pelo ministro. Pouca coisa mudou. Algumas fotografias deram lugar a outras, alguns QR Codes foram incluídos, “mas os conceitos seguem intactos”, ele explica.

O manual tem o tamanho de um gibi, capa azul militar e nenhum título. Reconta, objetivamente, a história do GSI e suas funções – entre as quais está cuidar dos conselhos de desenvolvimento do programa espacial brasileiro e do programa nuclear. “No GSI, sempre houve muito trabalho, mas não havia uma doutrina formal. Esse manual era necessário para que houvesse uma metodologia”, diz Amaro, orgulhoso da própria obra. “Não sei quem falou isso, pensador grego, francês, sei lá. Mas ouvi uma vez e decidi levar para a vida: ‘são necessários vinte anos para construir uma reputação e apenas cinco minutos para destruí-la’”, continuou o ministro, citando uma frase atribuída ao bilionário americano Warren Buffett. “Na segurança é assim: tudo pode parecer translúcido, mas é preciso sempre estar atento.” 





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