O cacique Akari Waurá era um menino quando esteve pela primeira vez na Gruta de Kamukuwaká. Descendente de lideranças Wauja, um dos dezesseis povos que vivem no Território Indígena do Xingu, ele foi preparado desde cedo para assumir o posto. Parte importante de sua formação se deu na gruta, localizada às margens do Rio Batovi, no Norte de Mato Grosso. Assim como havia acontecido com seu pai, seu avô e gerações a perder de vista, Akari foi levado até lá pelos mais velhos para conhecer os cantos, os rituais e as tradições de sua gente. Essa memória coletiva estava registrada em desenhos gravados por seus antepassados nas paredes de pedra, que Akari aos poucos aprendeu a interpretar.
Uma pessoa não indígena que quisesse transmitir a outros não indígenas a importância da Gruta de Kamukuwaká poderia dizer: ela é um dos berços da cultura milenar dos povos do Alto Xingu. Mas os waujas têm definições mais sintéticas e mais eloquentes. Deles já ouvi que aquela região é “uma biblioteca”, “uma escola”, “um museu”, “um parente”.
Na cosmogonia wauja, Kamukuwaká é o herói ancestral, e o Rio Batovi é cenário de aventuras e batalhas entre ele e Kamo, o Sol. A gruta é a antiga casa de Kamukuwaká e seus parentes, transformada pelo Sol numa prisão de pedra, de onde o guerreiro consegue escapar para conduzir seu povo a um refúgio no céu. Dessa contenda épica entre o herói e o Sol surgiu um conjunto de mitos e práticas cotidianas que até hoje regem a vida dos waujas e de outros povos do Alto Xingu. Para eles, tudo no rio e ao redor – as rochas, as plantas, as águas, as nuvens – tem significado.
A geração de Akari foi a última a frequentar livremente Kamukuwaká. Em 1961, o Xingu se tornou a primeira terra indígena demarcada no Brasil, mas aquele pedaço do Rio Batovi, justamente aquele pedaço, ficou fora da área preservada. Os waujas continuaram a visitar a região mesmo assim. Nos anos 1980, enquanto o futuro cacique fazia sua iniciação na gruta, cidades e fazendas brotavam por todo o Norte de Mato Grosso, fruto de políticas implementadas na década anterior pela ditadura para incentivar a expansão da fronteira agrícola em direção à Amazônia.
Hoje, Mato Grosso é o principal responsável por fazer do Brasil o maior produtor de soja do mundo. Em 2024, dos 145 milhões de toneladas de soja colhidas no Brasil, 39,1 milhões eram do estado – se fosse um país, estaria à frente da China e da Índia no ranking mundial. A pecuária e a produção local de outros grãos, como milho e algodão, também se destacam. Na edição mais recente da lista anual de cem municípios mais ricos do agronegócio, divulgada pelo governo federal, Mato Grosso é o estado com a maior porção – são 36. Oito dessas cidades ficam ao redor do Território Indígena do Xingu. É numa delas, Paranatinga, que está a Gruta de Kamukuwaká, encravada numa área de fazendas particulares.
Na juventude, Akari levava até oito dias de canoa para chegar à gruta. Hoje são até cinco horas de barco a motor ou três horas de carro da aldeia mais próxima. A viagem encurtou, mas o acesso ficou mais difícil, devido à presença ostensiva dos brancos, ao assoreamento do rio e ao aumento da pesca e do desmate. Por décadas os waujas insistiram em anexar aquela área ao território demarcado. Em 2010, tiveram uma vitória parcial: o Iphan, encarregado de preservar o patrimônio histórico do país, determinou o tombamento do Complexo Arqueológico de Kamukuwaká, que abrange a gruta e seu entorno, e de outro sítio tradicional do Alto Xingu, chamado Sagihengu, que também não está demarcado. Pela primeira vez, o governo brasileiro reconhecia como patrimônio cultural locais sagrados para os indígenas.
A falta de fiscalização, porém, era alarmante. Akari passou a monitorar a região por conta própria, quatro vezes por ano. Em setembro de 2018, ele e outros waujas levaram um grupo de pesquisadores até lá para documentar as gravuras rupestres. Estavam preocupados com o clima hostil criado pela ascensão do candidato Jair Bolsonaro, que prometia uma agressiva agenda anti-indígena. Quando chegaram, era tarde: a principal parede da gruta estava completamente depredada.
O estrago está registrado em um filme produzido por um dos integrantes daquela expedição, o comunicador Piratá Waurá (todos os waujas têm o sobrenome Waurá, uma designação antiga do povo). As imagens transmitem o abandono do sítio arqueológico, com vastas áreas desmatadas, gente pescando, latas de cerveja e garrafas de plástico jogadas nas margens do rio. E mostram em detalhes a gruta vandalizada.
A depredação parecia recente, feita com martelo e cinzel, pois o chão ainda estava cheio de lascas de pedra. Um trabalho executado com raiva e método, que desfigurou a parede de 8 metros de largura apenas nos pontos onde havia gravuras. Mais adiante, o filme flagra uma placa de tombamento do Iphan derrubada, com o alerta inútil: “A destruição ou retirada de qualquer material ou remoção de terra deste local constitui crime sujeito a pena de multa e detenção.” Até hoje, ninguém foi punido.
Desolados, os waujas passaram três dias acampados na beira do Rio Batovi, debatendo o que fazer. A viagem para documentar as gravuras era acompanhada por três organizações dedicadas ao patrimônio cultural: Instituto Homem Brasileiro, de Cuiabá, People’s Palace Projects, de Londres, e Factum Foundation, de Madri. Ali mesmo surgiu uma ideia: criar uma réplica da gruta, aproveitando a expertise da instituição espanhola, responsável por empreitadas como a criação de um fac-símile digital da tumba do faraó Tutancâmon, no Egito, e uma reprodução em tamanho real do Colosso de Constantino, na Itália.
Mas os waujas não deixariam de reivindicar a preservação de Kamukuwaká, que sempre significou mais do que gravuras na pedra. “Os não indígenas não conhecem a história e acham que a gruta é só rocha. Não conhecem o significado das gravuras, por isso não respeitam”, diz Akari, em língua arawak, no filme de Piratá. “Essa é a nossa luta: manter o nosso território vivo. Queremos a proteção e a valorização dos rios e dessa região onde tudo é nossa história. Estamos lutando pela natureza e não podemos desistir.”
Em outubro de 2024, seis anos depois do ataque, os waujas prepararam uma grande festa para celebrar a inauguração da réplica de Kamukuwaká. O local escolhido para abrigá-la foi a aldeia mais próxima da gruta, Ulupuwene, no limite Sul do Território Indígena do Xingu.
Com pouco menos de duzentos habitantes, Ulupuwene fica às margens do Rio Batovi e segue a organização tradicional das aldeias do Alto Xingu. As malocas ovais de madeira cobertas de sapê são dispostas numa planta circular, formando uma praça central de terra, na qual são realizados os rituais. Ao redor ficam as roças, sobretudo de mandioca, e a floresta que fornece aos moradores alimentos, remédios e matéria-prima para a fabricação do artesanato e das casas. Numa demonstração da célebre hospitalidade xinguana, os waujas ergueram alojamentos para que os muitos convidados – lideranças indígenas, autoridades do Iphan e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), apoiadores do projeto e jornalistas – pudessem dormir em redes. Nos dois dias de festa, a população da aldeia quase dobrou.
A comemoração teve como pano de fundo um lembrete das ameaças ao território. Cheguei a Ulupuwene no mesmo dia em que um helicóptero do Ibama trazia brigadistas para combater o fogo perto da aldeia. Desde meados do ano, uma combinação de queimadas criminosas e incêndios naturais agravados pela seca histórica devastava o Norte e o Centro-Oeste e levava nuvens de fumaça ao Sudeste. Naquele momento, Mato Grosso era o estado mais atingido da Amazônia Legal, concentrando quase um quinto dos focos de queimadas do país entre janeiro e setembro, de acordo com levantamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em Ulupuwene, naquele início de outubro, esses dados se manifestavam na forma de cheiro de fumaça constante e manhãs de céu leitoso e sol opaco.
A réplica percorreu um longo caminho até chegar ao Xingu. Depois da depredação, os técnicos da Factum Foundation realizaram um escaneamento a laser da gruta para gerar um modelo 3D. As gravuras vandalizadas foram reconstituídas a partir de registros antigos feitos por antropólogos e, principalmente, da memória do povo Wauja, em um processo de consulta às comunidades, coordenado pela People’s Palace Projects. O resultado foi uma reprodução da parede principal da gruta em tamanho real (8 metros de largura, 4 metros de altura e 4 metros de profundidade) feita de poliuretano, resina e outros materiais, pesando 1 tonelada.
Em outubro de 2019, um ano depois de testemunhar os estragos do ataque, o cacique Akari e outras lideranças foram a Madri para a primeira exibição pública da réplica. “As pessoas vão conhecer a nossa história e a nossa luta”, ele declarou. “E, quem sabe, poderão se juntar a nós para proteger a gruta, o rio e a nossa cultura.” A pandemia adiou a entrega da réplica aos waujas, mas, passados cinco anos, ela enfim cruzou o Atlântico para ser instalada em Ulupuwene.
Na véspera da inauguração, Akari Waurá andava orgulhoso pela aldeia, com o cabelo pintado de urucum e grafismos tradicionais desenhados pelo corpo, ostentando um colar de garras de onça, enfeites de penas coloridas e uma tornozeleira com guizos que anunciam de longe sua chegada. Aos 53 anos, ele é o cacique de Topepeweke, uma aldeia vizinha, e um dos anfitriões da cerimônia.
Num intervalo dos preparativos, Akari apresentou a réplica aos jornalistas, com o português que aprendeu nos anos 1990, quando morou no Rio de Janeiro para fazer figuração numa minissérie de época. Empolgado, explicou os mitos de Kamukuwaká e mostrou as gravuras reconstituídas na parede: símbolos de fertilidade, alusões a rituais e padrões gráficos da cultura alto-xinguana encontrados até hoje em cestas, pulseiras, cerâmicas e pinturas corporais (como as do próprio Akari). Relembrou as visitas à gruta com o pai e o avô, dias de festa e cantoria em que aprendeu a ser cacique. E resumiu a tristeza de ver o local vandalizado: “A sensação é a de perder sua família.”
Como uma foto de família, a réplica vai ajudar os waujas e outros povos do Xingu a revisitar e preservar suas tradições. Mas isso não diminui a preocupação de Akari com tudo o que está ameaçado. Ele enxerga no dia a dia o impacto da crise climática, agravada pela intervenção humana com o avanço do desmatamento, do agronegócio e de obras como estradas e barragens. Se antes a estação das chuvas durava de setembro a junho, agora atrasa dois ou três meses e termina mais cedo. A seca prolongada e as altas temperaturas prejudicam as roças, os rios, o controle dos incêndios e o abastecimento das aldeias. “O clima mudou muito, isso é o mais preocupante aqui no Xingu”, diz ele. “Em qualquer lugar que o fogo pega, espalha. A floresta está ficando careca. O rio está secando. A terra está ficando pequena. O que vem pelo futuro?”
A preocupação dupla com a tradição e o futuro está expressa na casa que os waujas levantaram para abrigar a réplica. É uma construção diferente das demais na aldeia, com tijolos feitos por eles mesmos, batizada de Centro Cultural e de Monitoramento Territorial. O espaço será usado para festas e rituais, como os que aconteciam na gruta, e estará aberto a alunos de escolas indígenas e visitantes que queiram aprender com as reproduções das gravuras. Vai funcionar também como um polo de iniciativas para vigilância e preservação do território. A ideia é que o conhecimento do passado reforce as lutas do presente, diz o antropólogo e professor Autaki Waurá: “Kamukuwaká para nós é como um museu de história natural para vocês, um lugar que ensina sobre a história, a cultura, as plantas medicinais, o meio ambiente.”
Aos 42 anos, Autaki faz doutorado em antropologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), depois de concluir a graduação e o mestrado na Universidade Federal de Goiás. Ele tinha retornado ao Xingu de uma “bolsa sanduíche” na Universidade Paris Nanterre, aonde chegou quase sem falar francês e conseguiu se virar (“como os antropólogos que chegam aqui sem falar nossa língua”, brinca). Seu projeto de doutorado é a criação do Museu Indígena Ulupuwene, dedicado à preservação do patrimônio cultural de seu povo e ao diálogo com instituições que mantêm nos acervos objetos e imagens do povo Wauja. Quando perguntei onde vai ser a sede do museu, Autaki percebeu que não entendi seu projeto e respondeu com um gesto que abarcava toda a aldeia: “O museu é a nossa casa, não é um lugar material. São os cantos, as flautas. Não precisa construir nada.”
Na noite anterior à inauguração da réplica, escutei uma melodia de flautas vinda da casa comunitária que fica bem no centro da aldeia e caminhei até lá. Era um grupo de jovens ensaiando. Parte essencial dos rituais, as flautas sagradas podem ter mais de 2 metros de comprimento e são fabricadas com uma espécie de bambu típica do Alto Xingu. Mas nos arredores de Ulupuwene não se encontra mais esse bambu, por isso as flautas que ouvi ali, com seu som grave e áspero, são feitas de canos de PVC.
No dia seguinte, os festejos começaram antes do nascer do Sol. A certa altura, os flautistas saíram da casa central e percorreram todas as malocas, entrando em cada uma para convocar os moradores. A cada parada o grupo aumentava um pouco, até que a aldeia inteira estava cantando e dançando na praça de terra – dezenas de homens, mulheres e crianças exibindo enfeites e pinturas corporais, numa sequência de movimentos que formavam amplas rodas que logo se desmanchavam para virar longas fileiras que se desmanchavam e viravam rodas, numa grande pulsação coletiva. De vez em quando, eu via Akari e Autaki no meio do povo, se divertindo.
Depois da pausa para um farto almoço de peixe na brasa, os waujas retomaram os rituais até o cair da tarde, quando todos se encaminharam para o Centro Cultural e de Monitoramento Territorial e realizaram ali uma última dança: estava oficialmente inaugurada a réplica da Gruta de Kamukuwaká.
Restava saber o que será da original.
Para entender por que Kamukuwaká e outras terras tradicionais dos povos xinguanos ficaram fora da área demarcada, é preciso recuar um pouco no tempo. Mil anos, mais ou menos.
Embora não se saiba a datação dos petróglifos na gruta, a hipótese mais aceita é que a região é ocupada pelo menos desde o século IX. Calcula-se que, nessa época, populações de língua arawak – como os waujas – chegaram às cabeceiras do Rio Xingu como parte de uma diáspora originária do Norte da América do Sul e do Caribe. Com o tempo, estabeleceram ali relações com outros povos, desenvolvendo um sistema social que teve seu ápice entre os séculos XIII e XVII.
Quando os portugueses desembarcaram no litoral do que viria a ser o Brasil, havia no Xingu um sofisticado complexo de aldeias com a mesma estrutura circular de Ulupuwene, mas até dez vezes maiores que as atuais. Eram protegidas por fossos inundados de até 3 metros de profundidade e conectadas por estradas de até 50 metros de largura e 5 km de extensão. As áreas habitadas eram servidas por uma rede de lagos artificiais, diques, roças e pomares, fruto de séculos de intervenções humanas que remodelaram a floresta e o solo, tornado mais fértil em razão desse manejo. Na definição do arqueólogo americano Michael Heckenberger, que tem desvelado esse cenário em pesquisas na região desde os anos 1990, as antigas aldeias do Alto Xingu eram “cidades-jardim”.
O Brasil só descobriu o Xingu em meados do século XX, quando o primeiro governo de Getúlio Vargas lançou um programa de colonização do Planalto Central. Apesar da ocupação indígena imemorial, o Estado enxergava ali um grande vazio. O cenário que a “marcha para o Oeste” encontrou nos anos 1940 já não lembrava o apogeu das cidades-jardim. Populações e aldeias tinham diminuído nos séculos anteriores sob o impacto da violência e das doenças trazidas pelo contato com os brancos. Ainda assim, subsistia um conjunto de povos que falavam línguas distintas, mas conviviam intensamente, relacionavam-se com a floresta da mesma forma que seus antepassados e compartilhavam costumes, crenças e rituais.
Para proteger aquelas sociedades ameaçadas pelo rolo compressor do desenvolvimento nacional, surgiu no Xingu a forma como entendemos hoje a demarcação de terras indígenas: a preservação não apenas do local de moradia dos povos, como acontecia nas esparsas demarcações realizadas até então, mas também do entorno essencial para seu sustento e suas práticas culturais: aldeias, rios, matas, montes, grutas.
A ideia foi apresentada a Getúlio Vargas, em 1952, por uma comissão composta de personagens centrais da história brasileira, como o marechal Cândido Rondon, patrono do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), os sertanistas Orlando e Cláudio Villas Bôas, líderes da marcha para o Oeste, e o antropólogo Darcy Ribeiro, então funcionário do SPI. O projeto de lei, redigido por Darcy Ribeiro, propunha a criação do Parque Indígena do Xingu, com uma área de 20,5 milhões de hectares, mais de um quinto do atual estado de Mato Grosso. Começava ali uma disputa que duraria quase uma década.
A campanha pela demarcação mobilizou indigenistas, pesquisadores, jornalistas e políticos, além de lideranças indígenas pouco conhecidas fora do Xingu, mas lembradas até hoje por seus povos, como Nahu Kuikuro e Kanato Yawalapiti. Políticos, empresários e fazendeiros de Mato Grosso combateram o projeto loteando às pressas milhões de hectares de terras destinadas ao parque e espalhando boatos e ameaças. Um senador mato-grossense sugeriu transferir o parque para o Norte da Amazônia e chegou a convocar o povo do estado a pegar em armas contra a demarcação.
A pressão fez efeito. Quando o parque foi criado, em 1961, por um decreto do presidente Jânio Quadros, tinha uma área quase dez vezes menor do que a prevista no projeto original. Foi uma conquista inédita, mas deixou de fora cabeceiras de rios, aldeias inteiras, lugares sagrados. Nas décadas seguintes, algumas omissões do decreto de 1961 foram corrigidas. Hoje, o Território Indígena do Xingu é formado pelo parque e mais três terras adjacentes demarcadas mais tarde: Wawi, Pequizal do Naruvôtu e Batovi.
A demarcação da Terra Indígena Batovi aconteceu apenas nos anos 1990. Os waujas recuperaram parte de suas terras ancestrais excluídas do parque e ali ergueram a aldeia Ulupuwene. Mas a região de Kamukuwaká ficou desprotegida. E continuou assim, mesmo com o tombamento pelo Iphan.
Pesquisadora do Instituto Homem Brasileiro, a arqueóloga Gabriele Viega Garcia, de 39 anos, trabalha com os waujas há mais de dez anos e é assessora dos povos xinguanos para assuntos de patrimônio cultural. Ela acompanhou de perto as limitações causadas pela falta de experiência do Iphan com a proteção do patrimônio indígena. “Quando se faz um tombamento, o Iphan precisa organizar o plano de gestão da área, com normativas claras. Mas isso não aconteceu em Kamukuwaká. Os fazendeiros não sabiam o que podia e o que não podia ser feito. Os indígenas também ficaram sem saber. Eles perguntavam: ‘A gente pode ir lá? A gente pode construir uma casa? Pode fazer nosso ritual?’”
Garcia colaborou com os waujas na formulação de um projeto que facilitaria a preservação da área: um corredor ecológico-cultural ligando o Xingu à Terra Indígena Marechal Rondon, um território mais ao Sul habitado pelo povo Xavante, o que na prática significaria o tombamento do Rio Batovi. Mas o projeto ainda tramita no Iphan. A arqueóloga estava na expedição que descobriu o vandalismo na gruta em 2018 e recorda a frustração que sentiu: “Tanto trabalho lutando para proteger aquele lugar e, de repente, as imagens com as quais eles tinham uma relação mais forte foram destruídas. Mas isso não enfraqueceu a luta dos xinguanos e mostrou que Kamukuwaká precisa ser reconhecida como terra indígena.”
Na véspera da inauguração da réplica, enquanto Ulupuwene se preparava para a festa, a arqueóloga e representantes dos waujas levaram o recém-empossado superintendente do Iphan em Mato Grosso, Fernando Medeiros, para conhecer a gruta. De volta à aldeia, Medeiros disse contar com a colaboração dos proprietários de fazendas na área tombada para garantir o acesso dos indígenas e investigar a depredação. Garantiu que a fiscalização já havia sido incrementada e afirmou ter planos de abrir um escritório técnico do Iphan no Xingu.
Medeiros reconheceu as dificuldades enfrentadas pelo Iphan em Mato Grosso, onde existem 1.345 sítios arqueológicos cadastrados, muitos deles ligados à história de povos indígenas e localizados em terra não demarcada. “O Iphan ainda trabalha pouco com comunidades indígenas”, disse. “O que estamos fazendo em Kamukuwaká é algo sem precedentes no Brasil e que esperamos poder expandir para todo o estado.”
Em 2024, o Iphan criou um grupo de trabalho com a Associação Terra Indígena Xingu (Atix), que representa os dezesseis povos do território, para identificar e preservar o patrimônio cultural local. A medida veio na esteira de uma vitória da Atix: depois de sete anos de protestos, o governo federal aceitou ouvir os povos xinguanos para redefinir o traçado de uma via estratégica de escoamento do agronegócio, a BR-242, que liga Mato Grosso à Bahia. O prolongamento da estrada passaria a pouco mais de 1 km de Kamukuwaká, com impacto ambiental e social em todo o Alto Xingu. Os indígenas também garantiram o direito à consulta nas obras da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste, que vai conectar os produtores de grãos em cidades vizinhas ao Xingu com os portos de Santos e São Luís, no Maranhão.
Em meio às celebrações em Ulupuwene, a Atix anunciou que esses e outros impasses com o agronegócio e as autoridades seriam debatidos dali a algumas semanas, em novembro, na assembleia geral da associação.
No auge das antigas cidades-jardim, no século XV, estima-se que a população do Alto Xingu superava 50 mil pessoas. No final da década de 1940, quando começou a circular a ideia de proteger aquele território, restavam cerca de setecentos indígenas, sobreviventes de ciclos de invasões e epidemias trazidas pelos brancos. Hoje, seis décadas depois da demarcação, em todo o Território Indígena do Xingu vivem quase 7 mil pessoas, de dezesseis povos: Aweti, Ikpeng, Kalapalo, Kamaiurá, Kawaiwete, Khisetje, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukwá, Naruvotu, Tapayuna, Trumai, Waujá, Yudja e Yawalapiti.
Eles ocupam uma área de 2,8 milhões de hectares, do tamanho do estado de Alagoas, dividida em quatro sub-regiões, nomeadas de acordo com a localização em relação ao Rio Xingu: Alto, Médio, Baixo e Leste. Alguns são descendentes dos antigos habitantes. Outros foram transferidos para lá em meados do século XX, porque viviam em terras vizinhas não demarcadas sob ameaça de invasores. São povos com laços culturais históricos, mas também antigas rivalidades, deixadas de lado em prol do que os antropólogos já chamaram de “pax xinguana”, acordo tácito que organiza a convivência no território e a relação com o mundo não indígena.
A gestão desse arranjo hoje fica a cargo da Atix, fundada em 1995. A complexidade da tarefa está estampada na bandeira da associação, um círculo formado por dezesseis estrelas, uma para cada povo, em cinco cores diferentes, uma para cada família de idiomas falados no Xingu. Na assembleia geral, a reunião de condomínio do território, a língua franca é o português.
A sede da Atix fica em campo neutro, fora do território, na cidade de Canarana, e a assembleia é realizada a cada ano em uma das sub-regiões. Por isso, em meados de novembro do ano passado, cerca de 150 representantes de todos os povos se dirigiram ao Baixo Xingu para quatro dias de debates no Polo Diauarum, antigo posto do SPI e da Funai agora administrado pelos indígenas.
A viagem da sede da Atix até o Polo Diauarum cruza quase todo o território indígena. São seis horas de carro e depois mais três de barco. O percurso é uma aula prática sobre o contraste entre a monocultura do agronegócio e a cultura das cidades-jardim. Nas primeiras três horas rodando por estradas vicinais, só se veem campos de soja, pontuados por retalhos de vegetação nativa que os proprietários são obrigados a manter como reserva legal. Até que uma porteira verde interrompe a monotonia: é a entrada do Território Indígena do Xingu.
Dali em diante a paisagem é dominada pela floresta de transição entre o Cerrado e a Amazônia, ainda mais vistosa nas margens do Rio Xingu, por onde o barco chega ao Polo Diauarum. Numa caminhada pelos arredores, entre mangueiras e bananeiras fartas, é fácil topar com pés de amora, caju, ingá, macaúba, mangaba, murici, pequi. Em média, a temperatura no Território Indígena do Xingu é cinco graus menor do que nas fazendas e cidades do entorno, segundo estudo recente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).
Na véspera da assembleia, os recém-chegados foram recebidos pelo presidente da Atix, Ianukula Kaiabi Suiá. Aos 47 anos, Ianukula estava no final do segundo mandato. Candidatou-se pela primeira vez em 2018, incentivado pelo resultado de outra eleição presidencial realizada pouco mais de um mês antes. “Quando o Bolsonaro ganhou, muita coisa passou pela minha cabeça”, recordou. “O Xingu estava sendo pressionado a abrir as portas para a monocultura. Eu pensava: o que vai ser de nós nesses próximos quatro anos?”
Descendente dos povos Kawaiwete e Khisetje, ele é filho de uma liderança histórica do Xingu, Mairawê Kaiabi, que trabalhou com os irmãos Villas Bôas, foi o primeiro presidente da Atix e é voz ativa nos debates até hoje. Ianukula nasceu no Diauarum e morou em Brasília na infância, quando Mairawê se transferiu do posto para a sede da Funai. Cresceu entre a aldeia e a cidade, vendo o pai transitar entre as rodas de conversa dos caciques e a burocracia do governo. Na juventude, alternou a faculdade de administração com projetos na Atix.
Essa formação abriu os olhos de Ianukula para o desafio que está diante dele e de outras lideranças da sua geração. “O nosso papel é fazer a ligação entre dois mundos muito diferentes, que funcionam em tempos muito diferentes”, disse ele.
Como o estatuto da Atix permite apenas dois mandatos, uma das pautas da assembleia era a escolha da nova diretoria. Em um processo que lembra o colégio eleitoral dos Estados Unidos, cada sub-região do Xingu tem direito a um número de delegados proporcional à sua população, e vence o candidato que tiver o apoio de mais delegados.
Ianukula espera que a próxima gestão dê continuidade às conquistas da atual. Ele destacou a implementação do protocolo que determina como o governo deve consultar os dezesseis povos a respeito de obras que podem afetar o território. Desde a iniciativa pioneira que afastou a BR-242 de Kamukuwaká, outras associações indígenas têm procurado a Atix para reproduzir a estratégia.
O presidente esteve na inauguração da réplica da gruta, que considera importante para “estimular a reflexão” de indígenas e não indígenas. “Quem agrediu Kamukuwaká não agrediu só o povo Wauja, agrediu o povo brasileiro”, ele disse, durante a cerimônia em Ulupuwene. Aproveitou a ocasião para mandar um recado às autoridades. “O governo precisa entender: não é que os lugares sagrados estão fora do nosso território, as demarcações é que deixaram de incluir os nossos lugares sagrados”, afirmou.
A preocupação com o que está fora da área demarcada não se limita a esses lugares. O desmatamento na Amazônia Legal, que vinha caindo desde o início do terceiro mandato de Lula em relação ao governo Bolsonaro, voltou a subir este ano. E Mato Grosso lidera as estatísticas, com 65% da área desflorestada em toda a Amazônia em maio de 2025, segundo o Inpe. O desmatamento no estado aumentou 237% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Os municípios no entorno do Xingu são um dos pontos críticos. Entre 2023 e 2024, o desmatamento ilegal em Mato Grosso devastou 170 mil hectares, principalmente nos polos agrícolas no Norte do estado, segundo levantamento do Inpe e do Instituto Centro de Vida.
O agronegócio de Mato Grosso tem se movimentado para legalizar mais desmatamentos. Em janeiro passado, a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que mudaria a classificação de áreas de bioma amazônico para Cerrado, o que permitiria uma redução da reserva legal em fazendas nessas regiões e liberaria a derrubada de até 5,5 milhões de hectares de floresta, de acordo com o Observatório Socioambiental de Mato Grosso. O governo do estado vetou o projeto, mas criou um grupo de trabalho para reformulá-lo, e a medida continua em debate.
A medida causou preocupação entre ambientalistas, devido ao histórico recente de ameaças à legislação ambiental em Mato Grosso. Em outubro de 2024, o governador Mauro Mendes, do União Brasil, sancionou uma lei que, na prática, retira o estado do acordo denominado Moratória da Soja. Com este pacto, em vigor desde 2008, empresas se comprometeram a eliminar da cadeia produtiva a soja plantada em terras desmatadas da Amazônia desde 2008. A Moratória da Soja é considerada um mecanismo exemplar de desenvolvimento sustentável: ajudou a reduzir o desflorestamento e levou os produtores a aproveitarem de modo mais eficiente campos já abertos. A lei sancionada por Mendes boicota o acordo, proibindo incentivos fiscais a empresas signatárias. Para o Xingu, isso pode trazer mais desmate e envenenamento nas cabeceiras dos rios – e assédio de produtores para plantar em terra indígena, como já acontece em outras partes do estado. A pressão econômica também se faz sentir de outras formas. Em 2023, a Polícia Federal e o Ibama desmontaram um esquema de extração ilegal de madeira do Xingu que operava havia mais de um ano e contava com o aliciamento de indígenas por madeireiros.
“Queremos que as comunidades entendam que gerar renda não pode ser um vale-tudo”, diz Ianukula. “A integridade do nosso território depende de como vamos usar a nossa terra. Como criar uma economia indígena que não desequilibre o meio ambiente?”, pergunta. Para ele, os xinguanos vivem “um momento de risco”, com pressão crescente de interesses externos: “Se a gente não discutir isso agora, vamos ter extração ilegal de madeira, mineração e pesca esportiva. A monocultura vai entrar no Xingu.”
No primeiro dia de assembleia da Atix, a economia dominou as conversas. Os representantes aprovaram a criação de uma diretoria de etnodesenvolvimento, para supervisionar projetos nas aldeias, e discutiram um programa de gestão ambiental e monitoramento territorial para entrar em vigor este ano. Mas havia muitos outros assuntos. O setor de educação apresentou planos para as escolas indígenas. A Atix Mulher, criada na gestão atual por demanda das lideranças femininas, escolheu as novas coordenadoras. Debateu-se também a relação da Atix com as dezenas de associações locais que existem por aldeias de todo o Xingu. Foram mais de doze horas de reuniões, interrompidas apenas para refeições e banhos de rio. A eleição para presidente ficou para o último dia da assembleia. Mas o que estava em jogo ali, o tempo todo, era algo maior: a construção da autonomia política dos xinguanos.
Na manhã seguinte, chegou uma notícia que interrompeu os debates. Uma antiga liderança, Itapayê Kaiabi, havia morrido de madrugada. Ele morava no Polo Diauarum e estava internado em uma cidade próxima. Consternados, os mais velhos pediram que a assembleia fosse cancelada em respeito ao período tradicional de luto. A diretoria atendeu. Uma rápida votação prorrogou o mandato de Ianukula até a assembleia que irá ocorrer neste ano, e a equipe da Atix logo começou a tratar dos desafios logísticos e burocráticos causados pela mudança de planos. Mairawê Kaiabi, o pai de Ianukula e primeiro presidente da associação, pediu a palavra. “Sei que isso é ruim para o pensamento do branco, porque tem questão de dinheiro, de agenda. Estamos aqui tentando construir uma coisa nova. Isso traz mudanças, mas também temos que respeitar a nossa cultura. Temos que respeitar o tempo de ficar alegres de novo.”
O tempo do mundo dos brancos pode ser diferente do tempo do mundo dos indígenas. Mas de vez em quando os ponteiros se acertam. No início de dezembro passado, dois meses depois da inauguração da réplica da Gruta de Kamukuwaká, um juiz federal de Mato Grosso emitiu uma decisão favorável aos povos xinguanos, em uma ação movida pelo Ministério Público Federal. De acordo com a sentença, a Funai deve retomar o processo de revisão dos limites da Terra Indígena Batovi, onde fica a aldeia Ulupuwene.
Em 2005, os waujas apresentaram um pedido para que o território fosse ampliado até a região da Gruta de Kamukuwaká. Quase vinte anos depois, o processo continua praticamente parado. Agora, a Funai tem um prazo de dois anos para concluir os estudos e definir a questão. Ainda não é uma conquista definitiva. Mas é mais um passo para garantir que as futuras gerações do Xingu tenham livre acesso à escola de pedra onde seus antepassados aprenderam a lutar.