Os créditos de abertura se sucedem, superpostos a uma enigmática sequência inicial. São quatro planos na luz do entardecer, com ruído ambiente e duração de 34 segundos, sem diálogos:
1- um homem de perfil olha para algo fora de quadro;
2- close da mão, com a qual ele segura uma chave inglesa de boca ajustável;
3- tomada geral do homem de corpo inteiro, de costas, com uma fogueira à sua esquerda, uma motocicleta à direita, um córrego à frente cruzando o quadro e, à distância, o que parece ser uma usina;
4- um plano só da fogueira, ao fim do qual se ouve a banda chinesa Brain Failure tocar os primeiros acordes do punk rock Underground, de DeeDee, com letra de Bai Juyi.
A música continua nos créditos de direção e no título, seguindo, ainda, com as legendas brancas sobre fundo preto: “Nem uma queimada/extingue todas as ervas daninhas/elas crescerão de novo/com as brisas da primavera.” Enquanto um grupo de mulheres celebra, a voz feminina em off que parece ser de uma animadora de programa de auditório anuncia que “a primeira primavera do novo século está chegando”.
Essa tentativa de descrever os quase dois minutos iniciais de Levado pelas marés, do diretor Jia Zhang Ke, nem de longe faz jus ao impacto que a sequência pode causar no espectador. Aqueles 34 segundos, em especial, são dotados de uma espécie de aura misteriosa difícil de captar apenas com palavras. A sequência, embora breve, é suficiente para que se perceba estar diante de algo inusitado, sui generis em relação ao que o mercado exibidor costuma oferecer.
Penso, em especial, na produção recente do cinema brasileiro, que, em média, tem sido mais que sofrível. Mesmo sendo inegável a necessidade de produzir muito para poder surgir, aqui e ali, alguns filmes que se destaquem, confirmando a máxima segundo a qual é preciso haver quantidade para que haja qualidade, muitos lançamentos recentes têm sido desanimadores. Há momentos em que é difícil resistir à impressão de que a vocação do Brasil é mesmo fornecer commodities para o mercado externo e não ter participação expressiva no mercado interno com produtos industrializados nacionais – filmes entre eles.
Embora eu prefira comentar filmes brasileiros, há semanas em que, de decepção em decepção, só me resta apelar para uma produção de outro país, sobretudo quando está sendo lançado um filme da qualidade de Levado pelas marés, que estreia nesta quinta-feira, 19 de junho, em cinemas de São Paulo, Brasília, Recife, Porto Alegre, Fortaleza e Poços de Caldas.
Uma tradução fiel de Feng Liu Yi Dai, título original do filme de Jia Zhang-Ke, poderia ser Uma geração à deriva, segundo anotação do diretor citada pela Fred (rádio online com sede em Londres). “Mas o termo feng liu, literalmente vento e ondas”, escreveu Jia, “tem uma forte conotação romântica. A câmera capturou coisas que pensávamos ter esquecido, mas são essas coisas que nos fizeram o que somos hoje.”
O título Levado pelas marés, que deve ter sido traduzido da versão em inglês (Caught by the tides), parece querer preservar algo da ideia contida na tradução do título original de estar “à deriva”, ou seja, “sem rumo, ao sabor dos ventos e das correntes…”, conforme ensina o Dicionário Houaiss. Talvez venha daí a referência às marés contida nos títulos em português e inglês – o movimento periódico das águas que ora se afastam, ora se aproximam, metáfora do ir e vir da memória entre o que parecia esquecido e foi lembrado, premissa da qual Levado pelas marés advém.
Nos dois terços iniciais do filme, Jia recorre com maestria a imagens documentais que ele mesmo gravou durante vinte anos, a partir de 2001, enquanto realizava Prazeres Desconhecidos (2002) e Em Busca da Vida (2006), este filmado durante a construção da Barragem das Três Gargantas. Transitando entre documentário e ficção com absoluta fluidez, ele suprime, em Levado pelas marés, como poucas vezes já se viu fazer com tamanha habilidade, o abismo que costuma ser invocado para manter os dois gêneros apartados.
Igualmente peculiar é a escassez de diálogos durante a jornada de Qiaoqiao (Zhao Tao) à procura de Guo Bin (Zhubin Li) ao longo dos 111 minutos de Levado pelas marés. Enquanto o drama dos protagonistas transcorre em primeiro plano, diferentes regiões da China formam o pano de fundo no qual se destacam as transformações do país em diversas épocas. Cria-se, desse modo, um elo entre as motivações dos personagens e o entorno que eles percorrem, onde trabalham e habitam.
Eu tinha um título provisório para um projeto a ser feito a partir dessas filmagens [documentais], chamado Um Homem com uma Câmera Digital, em homenagem a [Dziga] Vertov. Como você pode perceber, eu não tinha uma ideia concreta do que o filme seria, mas sabia que queria continuar usando a câmera digital para começar a reunir materiais e filmagens – momentos, quase documentários, dos meus atores e atrizes interagindo com os espaços e cidades em que estou filmando. Tornou-se um hábito meu usar isso continuamente para interagir com os espaços em que estou. Sinto-me muito privilegiado por interagir com espaços específicos e, muitas vezes, penso que é improvável que eu retorne a certos locais, cenários ou ambientes, então quero capturar o máximo possível, além do filme que estou fazendo.
Eu não sabia quando esse processo de coleta terminaria, porque queria que fosse em grande escala, não linear, impressionista. Foi só com a chegada da Covid que precisei colocar tudo em modo de espera e comecei a pensar em encerrar esta era e me preparar para o segundo ato da minha carreira. Foi então que revisitei as filmagens e os materiais que havia reunido ao longo dos últimos vinte anos e comecei a pensar em uma maneira de editá-los para que fossem coerentes e servissem a um propósito narrativo, juntamente com um terço final de um filme recém-roteirizado.
(…) O que tornou este projeto em particular tão desafiador foram as opções que a filmagem ofereceu. É quase como as nuvens no céu: você pode se mover vertical ou horizontalmente. Isso me deu muito o que pensar, especialmente em termos de como eu deveria estruturá-lo: espacialmente, dependendo dos diferentes locais e cidades, ou temporalmente, concentrando-me em uma era específica, ou mesmo nas mudanças que ocorreram durante esses períodos.
Por fim, decidi usar Zhao Tao [atriz principal] como um veículo para nos levar, como público, a uma jornada emocional. Através de sua perspectiva, conseguimos ver não apenas como Qiaoqiao [a personagem protagonista] vivencia as mudanças do país como indivíduo, mas também podemos ver, como espectadores, as mudanças no cenário à medida que ela atravessa os diferentes locais, em diferentes idades, da juventude à velhice. Essa é a intenção: revelar o que eu quero que o público preste mais atenção, que são as pistas históricas e contextuais das mudanças que a China vivenciou nas últimas duas décadas.
Levado pelas marés é um panorama grandioso, em tom menor, da China, se é que isso é possível.