Numa tarde ensolarada de abril, Jason Stanley decidiu que daria a última aula daquele semestre letivo no pátio. O professor de filosofia da linguagem discorreu sobre o conceito de “palavras-códigos” – expressões que carregam, além do significado literal, um sentido cifrado e, por isso, funcionam como uma senha para certos grupos sociais ou políticos. No fim da aula, a turma presenteou o mestre com flores e um cartão que trazia breves mensagens de todos os estudantes. Uma delas elogiava: “Você é o melhor professor que já tive em Yale.” Outra dizia: “Meu pai te odeia.”

O ódio em questão reflete o que Stanley representa hoje nos Estados Unidos. O nova-iorquino virou quase uma palavra-código para “progressista” ou “liberal” – termos que os americanos costumam empregar quando se referem à esquerda. De origem judaico-europeia, Stanley ficou conhecido sobretudo por estudar o autoritarismo. No livro Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”, lançado em 2018, ele identifica e esmiúça os pilares que sustentam a ideologia totalitária e ultranacionalista. Aborda, por exemplo, os ataques contra intelectuais, a disseminação de teorias conspiratórias e notícias falsas, o moralismo, a exaltação de um passado mítico, o culto à hierarquia e a destruição do estado de bem-estar social. Na visão do autor, que já escreveu outros seis livros e publicou dezenas de artigos em jornais acadêmicos e da grande imprensa, as estratégias fascistas não desapareceram com o fim da Segunda Guerra e continuam presentes nas democracias contemporâneas. Traduzido para 22 idiomas, inclusive português, Como funciona o fascismo chegou a figurar na lista de mais vendidos do The New York Times.

Depois de lecionar por doze anos na Universidade Yale – instituição particular de Connecticut, fundada no século XVIII –, Stanley resolveu se demitir e trocar o país natal pelo Canadá. Agora, em setembro, estreia como professor de uma universidade menos prestigiosa, a de Toronto, recebendo um salário 25% menor. A razão da mudança? O declínio do sistema democrático americano sob o governo de Donald Trump. “Meu livro de 2018 já dizia: esse cara é um fascista, [a situação] vai ser muito ruim”, afirma Stanley à piauí. Quando a obra aterrissou nas livrarias, Trump cumpria o primeiro mandato de presidente. “Tudo na minha pesquisa dizia que o cara seria exatamente como foi e está sendo.”

O professor está vendo na Casa Branca um compilado das estratégias que analisou em seu livro. Para ele, o fascismo mostra as garras quando Trump interfere nos critérios que norteiam a liberação de verbas destinadas à educação, deixa de financiar iniciativas que promovem a igualdade de raça e gênero, fecha uma agência governamental que investiga ofensas aos direitos civis ou persegue universitários pró-Palestina sob o argumento de combater o antissemitismo. “No fim das contas, o governo está reforçando o estereótipo de que nós, judeus, controlamos as instituições. É como se avisasse: ‘Olha o que acontece se você mexe com a comunidade judaica. Ela te destrói.’ Isso, sim, me parece antissemita.”

Stanley diz que, em março, quando tomou a decisão de deixar Yale, pensava que “havia uns 30% de chance de tudo ficar muito ruim” nos Estados Unidos. Hoje, considera que não se trata mais de mera hipótese: o país, segundo ele, já “cruzou a linha” em direção ao fascismo. Ainda não tem os traços de um Estado totalitário, mas também não pode mais ser considerado uma democracia funcional, amparada em um sistema de pesos e contrapesos.

Em abril, pouco antes de sua última aula, o professor caminhou emocionado pelos corredores do Connecticut Hall, sede do departamento de filosofia. É o prédio mais antigo de Yale, construído em estilo georgiano entre 1750 e 1752. O docente se lembra com detalhes de sua primeira aula no edifício. “Um estudante chegou para mim e perguntou: ‘Qual o número do seu celular?’ Eu estranhei: ‘O quê?!’ Ele explicou: ‘Tenho o celular do Harold Bloom. Você é mais importante que o cara?’” O rapaz se referia ao crítico literário que lecionou em Yale ao longo de seis décadas e recebeu o principal título acadêmico da instituição, o de Sterling Professor.

Ok, os alunos da universidade podem ser um tanto arrogantes, reconhece Stanley. Mas também são “espetaculares, superpilhados e muito dedicados”. Por causa da intensa vida intelectual que Yale proporciona, o pesquisador de 55 anos achava que iria se aposentar ali.

Yale fica na cidade de New Haven e integra a Ivy League, confederação desportiva que reúne as oito mais cobiçadas universidades do Nordeste dos Estados Unidos, incluindo Harvard, Princeton e Columbia. Do campus onde Stanley lecionava saíram inúmeros ganhadores do prêmio Nobel e presidentes da República, como Gerald Ford, Bill Clinton e os dois George Bush (pai e filho). Foi lá que cientistas desenvolveram o tratamento de quimioterapia contra o câncer e a primeira bomba de insulina. Stanley considera a instituição uma “comunidade idílica” onde, “se você quiser conversar sobre a relação do antifascismo com a Tradição Radical Negra [corrente filosófica e de ação política que despontou no século XX], pode levar seus filhos até a casa de um amigo que estuda o assunto e deixar as crianças brincando enquanto você aprende o que precisa aprender”.

O pesquisador ressalta que não é fácil construir uma boa reputação entre os alunos da graduação. “Isso demorou doze anos para acontecer comigo. As pessoas, com o tempo, começaram a dizer: ‘Você precisa passar pela ‘experiência Jason Stanley’’. Porque sou um tipo bem peculiar de professor, já entro na sala falando.”

A ex-aluna Angel Nwadibia concorda. Ela cursou filosofia da linguagem e outras quatro disciplinas com Stanley, além de assessorá-lo nas pesquisas que originaram o mais recente livro dele, Apagando a História: Como os Fascistas Reescrevem o Passado para Controlar o Futuro, recém-publicado no Brasil pela L&PM. Nwadibia conta que as aulas do professor são divertidas e repletas de “stanleynismos”. Um exemplo: “Ele ama fazer piadas sobre os judeus e a experiência de sua família com o Holocausto. Não tem nada de engraçado, claro. Todo mundo na classe meio que se pergunta: a gente deve rir? Stanley gosta de anedotas que desconcertam as pessoas.” É um humor sarcástico e autodepreciativo, típico dos judeus nova-iorquinos. O pesquisador segue uma longa tradição judaica de enfrentar o ódio com piada, como se satirizar o preconceito diminuísse seu poder.

Os antepassados de Stanley amargaram o antissemitismo na carne. Sua mãe, polonesa, viveu parte da infância num campo de trabalho forçado na Sibéria. Seu pai, alemão, levou surras nas ruas de Berlim com apenas 5 anos. Os dois foram ainda pequenos para os Estados Unidos. O professor nasceu em Syracuse, no estado de Nova York, e cresceu ouvindo histórias dos parentes sobre o nazismo. Sua avó paterna chegou a publicar em 1957 um relato autobiográfico a respeito do Holocausto. Apesar de tantas ligações com o tema, Stanley demorou a estudá-lo depois de virar filósofo e linguista. Ele começou a carreira pesquisando semântica e epistemologia.

Em 2011, escreveu pela primeira vez para o The New York Times. O texto expunha os perigos da conspiração de extrema direita que acusava o então presidente Barack Obama de ser um radical islâmico infiltrado. A partir daí, o professor publicou vários artigos sobre a relação entre discurso político e democracia.  “Eu usava meus conhecimentos em filosofia da linguagem para tentar entender como as pessoas fogem da realidade”, recorda.

Também em 2011, Stanley teve seu primeiro filho. Quatro anos depois, veio o segundo. A mãe de ambos é uma cardiologista negra. A família multirracial levou o pesquisador a refletir sobre o sistema penitenciário americano. Com aproximadamente 2 milhões de presos, os Estados Unidos concentram uma das maiores populações carcerárias do planeta. Cerca de 60% dos detentos são negros e latinos. “Mesmo assim, o país ainda é visto [pelos brancos] como um bastião da autonomia e da liberdade. Por quê?”, indagava-se o professor. Qual o motivo de os brancos naturalizarem tanto o encarceramento das minorias raciais? O instinto de Stanley lhe dizia que a resposta tinha a ver com propaganda política. “Sempre ouvimos falar que homens negros são perigosos e predadores, não é?”

Surgiu, então, o premiado How propaganda works (Como funciona a propaganda). No livro de 2015, sem tradução em português, o pesquisador analisa de que maneira a retórica política pode minar a democracia liberal. Ele afirma que a propaganda, quando usada para minar a empatia por certos grupos sociais ou para esconder os interesses por trás de uma política, acaba reforçando a desigualdade e limitando o debate democrático. “Quando a propaganda toma conta do cenário político, há o risco de o vocabulário da democracia liberal ser utilizado para mascarar uma realidade antidemocrática”, adverte o autor num trecho da obra. Stanley doou a renda do livro à Prison Policy Initiative, organização apartidária e sem fins lucrativos que pesquisa a criminalização em massa e faz campanhas antirracistas.

Semanas depois de How propaganda works ser publicado, um amigo ligou para o professor e sugeriu: “Você precisa escrever sobre Donald Trump.” Àquela altura, maio de 2015, o bilionário tinha acabado de anunciar sua primeira pré-candidatura à presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano. O pesquisador topou o desafio e redigiu o artigo. Mal recebeu o texto, um editor do The New York Times aconselhou que Stanley mudasse o teor da matéria e tirasse o foco de Trump. “Todos sabem que a pré-candidatura dele não é séria”, argumentou. O autor modificou alguns pontos do artigo, mas manteve a avaliação de que a estratégia de Trump se mostrava eficiente. “Naquele momento, uma chave virou para mim”, diz o professor. “Pensei: meu Deus, um movimento fascista está brotando! As pessoas têm que prestar atenção nisso.” Daí em diante, Stanley aprofundou seus estudos sobre o autoritarismo.

No começo de 2023, a Universidade de Toronto convidou o pesquisador para lecionar no departamento de assuntos globais e políticas públicas. Ele até considerou aceitar a oferta, mas Yale a cobriu, e o professor resolveu ficar. Em novembro de 2024, quando Trump se elegeu presidente pela segunda vez, Stanley balançou. Prevendo o que ia acontecer, procurou a instituição canadense e perguntou se a proposta continuava de pé. Como o cargo permanecia vago, a universidade lhe fez outro convite em janeiro de 2025, pouco antes de Trump tomar posse.

O nova-iorquino, porém, não planejava emigrar sozinho. Pretendia levar os filhos e a mãe dos meninos, de quem havia se divorciado. “Iniciei uma conversa com minha ex-mulher. Não sei o quanto você entende de divórcio, mas essas negociações são bem difíceis…” Ela não queria ir, e separar a família estava fora de cogitação. Além do mais, todos ao redor do pesquisador achavam que a administração Trump não causaria tantos estragos assim. Stanley recuou e rejeitou Toronto de novo.

Só que aí eclodiram os ataques às universidades. Com o pretexto de deter “o assédio e a violência antissemitas”, supostamente expressos pelas manifestações estudantis contra os bombardeios israelenses na Faixa de Gaza, Trump ameaçou cortar ou congelar as verbas federais das instituições de ensino superior que se negassem a seguir as diretrizes do governo. Não bastasse, criou barreiras para os programas de inclusão e diversidade. Passou, ainda, a perseguir alunos estrangeiros que tivessem qualquer relação com os protestos anti-Israel. Em março, duas prisões chocaram a comunidade acadêmica: a do ativista palestino Mahmoud Khalil, pós-graduando de Columbia, e a da turca Rümeysa Öztürk, doutoranda da Universidade Tufts que coescreveu um artigo denunciando o genocídio em Gaza.

Também no primeiro semestre de 2025, enquanto Harvard e outras escolas de peso resistiam às bravatas do presidente, Columbia entregou os pontos. Trump tinha declarado que não repassaria 400 milhões de dólares à universidade. Com a desfaçatez costumeira, alegou que a instituição deixara de punir discursos de ódio contra judeus dentro do campus. Acossada, Columbia não só aceitou reformular políticas internas como permitiu que o governo controlasse o departamento de estudos do Oriente Médio. Foi a gota d’água para Stanley. O professor concluiu que chegara a hora de partir.

Ele reivindicou a vaga canadense de volta e recebeu sinal verde. Depois de finalmente convencer a ex-mulher e os filhos a acompanhá-lo, comunicou a saída de Yale para o diretor do Centro de Humanidades (que ficou surpreso) e os colegas (que já imaginavam). As mídias americana e internacional logo noticiaram a decisão. À época, mais dois respeitados professores resolveram abandonar Yale para trabalhar na Universidade de Toronto: o casal de historiadores Marci Shore e Timothy Snyder, ambos especialistas em autoritarismo.



Como Stanley, Marci Shore e o marido não aceitaram de imediato a oferta do exterior. Fazia pelo menos dois anos que a instituição canadense estava tentando contratá-los. Embora gostassem de Toronto, eles só bateram o martelo em novembro de 2024, assim que Trump venceu a eleição. Shore diz à piauí que se preocupa com o avanço da extrema direita nos Estados Unidos desde a corrida eleitoral de 2008, quando os republicanos escolheram a então governadora do Alasca, a ultraconservadora Sarah Palin, para vice-presidente na chapa derrotada de John McCain. “Se comecei a surtar antes da maioria dos meus colegas, não é porque sou mais inteligente e, sim porque acompanho o que ocorre na Rússia e na Ucrânia.”

A historiadora estuda o totalitarismo no Leste Europeu e vê similaridade entre os Estados Unidos de hoje e os regimes opressores que se impuseram ou se impõem sobre o Leste europeu. “Apesar de imperfeitas, comparações históricas podem servir como lentes de aumento”, ela diz. No último dia 28 de fevereiro, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, visitou a Casa Branca para solicitar ajuda na luta de seu país contra a invasão russa. Diante de jornalistas, Trump propôs caminhos que o ucraniano julgou ineficazes. Os dois iniciaram um bate-boca, e o vice-presidente americano, J. D. Vance, aproveitou a tensão para fazer uma observação humilhante a Zelensky: “Você deveria agradecer o presidente [Trump] por estar tentando acabar com o conflito.” Segundo a professora, a exigência de os agredidos expressarem gratidão ao agressor ou àqueles que o favorecem era comum nos interrogatórios promovidos pelas polícias secretas comunistas.

Shore conta que viajou recentemente para Kyiv, a capital da Ucrânia, onde encontrou uma cineasta. “É uma mulher que foi capturada pelos russos no início da guerra de Donbas, em 2014, foi agredidada e sofreu abuso sexual, mas sobreviveu. E, quando foi solta, um soldado russo – um dos que a mantiveram em cativeiro – ordenou: ‘Agradeça!’”   

Timothy Snyder, o marido da historiadora, também é expert no Leste Europeu, além da Europa Central. Entre os inúmeros livros que lançou, destacam-se Na contramão da liberdade – A guinada autoritária nas democracias contemporâneas, de 2018, e os que tratam do Holocausto.

Em maio, o The New York Times publicou um vídeo com Stanley, Shore e Snyder sob o título: Nós estudamos o fascismo e estamos saindo dos Estados Unidos. A postagem repercutiu muito. “Eu tinha a impressão de que as pessoas andavam meio sonâmbulas, sabe? Os zilhões de artigos que escrevi, os livros, os seminários, nada parecia surtir o mesmo efeito de simplesmente dizer ‘isso é realmente grave’”, constata Stanley.

O trio recebeu tanto apoios calorosos quanto críticas ácidas. Houve quem alegasse que intelectuais de tal calibre seriam mais úteis se resistissem dentro dos Estados Unidos e não fora. Numa entrevista à NPR, a rádio pública americana, Stanley declarou: “Tenho filhos judeus e negros, e os ataques às políticas de diversidade, equidade e inclusão afetam justamente os negros. Em paralelo, está se gerando no país uma raiva popular massiva contra os judeus ao nos colocarem como justificativa para desmontar a democracia. Não botarei a segurança dos meus filhos em risco.”

A debandada dos professores mexeu com uma já fragilizada comunidade universitária. Angel Nwadibia reconsiderou o próprio futuro após a decisão do mentor Stanley. “Gostaria de me desenvolver intelectualmente sem a ameaça de ser arrancada das ruas por minhas opiniões políticas”, afirma. Ela está de mudança para a Inglaterra. Vai cursar doutorado na Universidade de Oxford.

Uma aluna brasileira relata que o exílio dos pesquisadores amplificou a ansiedade em Yale. “Escuto meus professores dizerem que temem perder o emprego. É um cenário bastante assustador.” Em conversas com outros estudantes, a jovem ouviu desaprovações à saída de Stanley, Shore e Snyder. “Meus colegas acham que os três deveriam permanecer nos Estados Unidos para ensinar o que sabem sobre repressão e ditaduras.” Ela preferiu não se identificar à piauí por receio das retaliações do governo.

Em 16 de maio, Stanley entregou sua carta de renúncia à universidade americana. No texto, disse admirar o modo como professores, alunos e funcionários em geral responderam “a desafios sociais extraordinários” e “toleraram divergências e dissidências”. “Não deixo os Estados Unidos por causa de Yale”, salientou. “Em Yale, minha voz ganhou o mundo. Foi um privilégio atravessar estes tempos turbulentos ao lado de vocês.”





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