O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou a doze anos de prisão o médico Paulo Augusto Berchielli, de 65 anos, por estupro de vulnerável. A decisão foi assinada na segunda-feira (11) pelo juiz Eduardo Pereira Santos Júnior, da 5ª Vara Criminal. O médico foi acusado de dopar e estuprar uma paciente pouco depois de operá-la para a remoção de uma hemorroida. O processo vinha correndo desde 2023. Berchielli nega ter cometido o crime, mas evidências colhidas na investigação embasaram a sentença: um laudo pericial encontrou seu sêmen na calcinha da paciente, e um laudo toxicológico demonstrou que a mulher recebeu uma carga alta de sedativos. Testemunhas confirmaram que a dose era incondizente com a cirurgia à qual ela se submeteu.

O laudo pericial – chamado de laudo de confronto genético conclusivo – foi apresentado pelo Instituto Médico Legal (IML) em julho de 2023. No mês seguinte, a pedido do Ministério Público, a Justiça decretou a prisão preventiva de Berchielli. O médico, no entanto, não foi encontrado. A polícia fez quatro tentativas de prendê-lo, em vão. Ele ficou nove meses foragido até que, em maio de 2024, o juiz Fábio Henrique Falcone Garcia revogou o mandado de prisão, concordando com os argumentos da defesa de que o réu estava colaborando com a Justiça e não tinha antecedentes criminais. No despacho, o juiz ordenou também que Berchielli mantivesse uma distância de 500 metros da vítima.

Agora, com o processo concluído, ele deverá cumprir a pena em regime fechado. “A gravidade concreta da conduta se evidencia na premeditação, no ambiente de confiança e na extrema vulnerabilidade da vítima, que se encontrava sedada, recém-operada, com dores intensas e completamente impossibilitada de resistir”, escreveu o juiz Santos Júnior, na decisão de segunda-feira (11). “O réu, médico cirurgião, abusou da posição de autoridade e da confiança inerente à relação profissional para, dolosamente, praticar atos libidinosos enquanto a paciente ainda se recuperava do procedimento cirúrgico, o que demonstra frieza, desvio ético profundo e absoluto desrespeito pela dignidade alheia.” O magistrado também determinou a retenção do passaporte de Berchielli, para evitar uma possível fuga. O médico está recorrendo da decisão e responde ao processo em liberdade. 

Berchielli é um coloproctologista, especialidade focada em doenças do intestino grosso (cólon), reto e ânus. Durante anos, atendeu pacientes numa clínica de dois andares no Tatuapé, bairro da Zona Leste de São Paulo, que dividia com outros médicos. Tinha boa reputação profissional, até que, a partir de 2023, despontou na imprensa uma série de denúncias contra ele por estupro de vulnerável – tipificação que se aplica quando a vítima não tem condições de consentir ou se defender. Ao menos cinco processos correm hoje na Justiça de São Paulo contra Berchielli, todos por estupro de vulnerável. Essa foi a primeira condenação.

A sentença inicia uma nova fase de uma história que se arrastou por quatro anos e que é exemplar do calvário pelo qual muitas mulheres passam, no Brasil, ao denunciar um crime sexual. 

O episódio que levou à condenação de Berchielli aconteceu em agosto de 2021, quando Cris,¹ uma bombeira militar de São Bernardo do Campo (SP), buscou atendimento em sua clínica. Ela vinha postergando há anos o tratamento de uma hemorroida agressiva, sequela de uma gravidez com complicações. A dor, que começou pequena, se tornara insuportável. Cris procurava indicações de proctologistas quando um sobrinho lhe recomendou Berchielli – um “deus”, segundo ele, tamanha a boa impressão que havia causado ao atendê-lo, tempos antes. Na internet, as avaliações do médico faziam coro ao elogio. Destacavam que Berchielli tinha 35 anos de experiência, era “muito atencioso” e “excelente profissional”.

Cris foi sozinha à clínica. Ela conta ter estranhado que, tão logo entrou no consultório, Berchielli trancou a porta e pediu que ela ficasse nua. O que causou estranheza não foi o pedido – que era de se esperar, em um exame dessa natureza –, mas a maneira indelicada como foi feito. O médico, segundo Cris, não lhe deu privacidade para se despir. Terminada a consulta, ele explicou que a situação dela era grave e demonstrou estar alarmado. Marcou uma cirurgia para dali a três dias, em 26 de agosto, em uma sala da própria clínica.

Na data marcada, Cris compareceu como combinado. Era uma quinta-feira à tarde. “Naquele dia eu usava um vestido florido, bem solto, justamente por causa da cirurgia”, ela diz. Terminada a operação, Cris pediu que autorizassem seu sobrinho a subir até a sala onde ela estava, no segundo andar, para que lhe fizesse companhia. A enfermeira respondeu que não seria possível. Em seguida, foi Berchielli quem reapareceu na sala. Explicou que precisava revisar a região operada e deu dois comprimidos para Cris. “Na hora, achei que eram para dor. Fiquei completamente sedada, tonta. Ele me levantou e disse que iria me deitar na maca, de bruços, para me examinar.” A memória de Cris, dali em diante, é fragmentada. Ela perdeu a consciência. Depois de acordar, teve de ser carregada pelo sobrinho para fora da clínica.

Cris é uma mulher saudável de 49 anos. Bombeira desde 1998, tem 1,80 metro de altura e hábitos atléticos. Naquela noite, no entanto, ao chegar em casa, desabou na cama. Ficou deitada por três dias seguidos, sem conseguir se levantar, sem tomar banho, com o mesmo vestido florido. Tinha sangramentos e uma dor tão intensa que não lhe permitia sentar.

Na manhã de domingo, vieram os primeiros flashes de memória. “O que eu senti, mesmo sob efeitos do remédio, foi o doutor me derrubando com força na maca. Senti ele segurando minha cabeça e fazendo movimentos vigorosos, ao ponto de a minha cabeça ficar batendo na parede”, diz Cris. “As batidas eram tão fortes que me fizeram vomitar. Ele simplesmente virou o meu rosto, para que eu não engasgasse, e continuou. Eu não entendia o que estava acontecendo e não sentia dor. Tinha só flashes de consciência. As imagens escureciam e às vezes ficavam claras.” Cris conta que, num desses clarões de consciência, viu Berchielli limpando as partes íntimas numa pia. “Eu tinha vontade de falar, de gritar, mas as palavras não saíam da minha boca. Ele levantou a minha calcinha, colocou um paninho na calcinha [para conter o sangramento] e me deixou assim. De bruços, na maca, atordoada.” 

Ao relembrar de tudo, Cris telefonou para o sobrinho, que é advogado. Ele a orientou a não tomar banho e a guardar a calcinha, o paninho e o vestido em um saco plástico, já que esses objetos poderiam servir como provas. Os dois foram juntos, naquela mesma noite de domingo, até a 5ª Delegacia de Defesa da Mulher, localizada a menos de 2 km do consultório de Berchielli. Ao chegarem lá, foram informados de que não havia mais atendimento àquela hora – embora, estatisticamente, a maioria dos crimes de violência contra mulher aconteça à noite, em finais de semana. Teriam de retornar no dia seguinte. 

A espera contribuiu para a insegurança que Cris já sentia. Ela tinha receio de denunciar Berchielli. Passou a duvidar da própria memória, e temia que não acreditassem no seu relato. O temor se agravou ainda mais na segunda-feira. Naquele dia, ela tinha uma consulta de revisão marcada na clínica. Seu sobrinho foi no seu lugar e confrontou o médico, que negou ter cometido qualquer abuso (mais tarde, diante do laudo que identificou seu sêmen na calcinha de Cris, o médico passou a dizer que teve uma relação sexual consensual com a paciente – versão que o juiz classificou como “oportunista e tardia”, já que, até então, Berchielli havia alegado à polícia ter praticado apenas sexo oral).

Depois de dar com a cara na porta da delegacia, Cris passou quatro dias em casa. Só na quinta-feira, 2 de setembro, juntou forças para procurar novamente a polícia. Ela conta que foi recebida com desconfiança na 5ª Delegacia de Defesa da Mulher, espaço que deveria justamente ser acolhedor com mulheres vítimas de violência. “Não foi imaginação sua?”, ela diz ter ouvido da delegada. “Você tinha tomado remédios”; “É uma acusação muito grave.” Cris insistiu e contou o que lembrava. Ao terminar de ouvi-la, a delegada registrou o boletim de ocorrência por estupro de vulnerável e, virando-se para as escrivãs, disse, lacônica: “É o mesmo modus operandi.” Cris não perguntou, e a delegada não se explicou, mas o comentário deu a entender que aquela não era a primeira denúncia contra Berchielli por abuso sexual.

Antes de sair da delegacia, Cris entregou o vestido, a calcinha e o paninho em um saco plástico, como provas. As peças foram recolhidas, lacradas e guardadas pela delegada. Em seguida, sem que lhe fosse oferecida escolta policial ou acompanhante, Cris se dirigiu ao hospital Pérola Byington, onde foi orientada a fazer um exame de corpo de delito. Embora já tivesse se passado uma semana desde a cirurgia, o laudo ainda detectou na sua urina e no seu sangue a presença de prometazina e codeína, substâncias com efeitos sedativos.

Cris estava segura de que, diante das evidências e do comentário da delegada, o inquérito se resolveria com rapidez. O que se seguiu, porém, foi um enrosco. Em outubro, o IML fez um laudo apontando que não havia vestígio de sêmen no vestido que Cris entregou como prova. O instituto nada dizia a respeito da calcinha. Por orientação de seu advogado, Cris retornou à 5ª Delegacia de Defesa da Mulher para perguntar se o IML faria, afinal, uma perícia nesta peça de roupa e se a polícia continuava em posse dela. Cris conta que, ao fazê-lo, sofreu com o deboche de duas escrivãs: “Fulana, você tá com a sua calcinha aí?”, perguntou uma delas. A outra respondeu: “Eu tô, e você? Ninguém perde calcinha, não!” Cris diz que a chacota, para ela, foi como um segundo abuso.

A perícia foi feita, finalmente, e o resultado ficou pronto em janeiro de 2022, constatando que havia líquido seminal na calcinha. Somente em junho daquele ano Berchielli foi convocado a depor na delegacia. Em agosto, ele cedeu uma amostra de seu DNA para que fosse feito o laudo de confronto genético. O inquérito parecia avançar, mas novamente emperrou. Apenas em julho de 2023 – quase um ano depois da coleta do DNA de Berchielli – o laudo do IML foi incorporado aos autos, demonstrando que o sêmen era, sim, do médico. O inquérito, então, foi concluído. Em agosto, o Ministério Público denunciou Berchielli à Justiça.

A assinatura do laudo mostra que ele havia sido concluído pelo IML em dezembro de 2022. Não está claro, até hoje, por que esse documento, crucial para a investigação, só chegou ao conhecimento da polícia sete meses depois (a escrivã e o delegado do caso chegaram a cobrar o IML cinco vezes, em vão). Procurada pela piauí, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, responsável pelo instituto, não esclareceu o mistério. Lamentou, no entanto, o relato de Cris sobre o desrespeito que sofreu na delegacia. “A Polícia Civil pede desculpas pelo ocorrido e reforça que as condutas relatadas não correspondem aos protocolos e diretrizes da instituição. Todos os profissionais da DDM [Delegacia de Defesa da Mulher] foram reorientados para garantir o atendimento e acolhimento adequados a todas as vítimas.”

As denúncias contra Berchielli vieram à tona pela primeira vez em outubro de 2023, quando uma de suas pacientes relatou, em entrevista anônima à TV Record, ter sido estuprada por ele. A mulher contou que a violência foi tão agressiva que, durante muito tempo, não conseguia se sentar. Ela disse que teve de recorrer a outro médico para fazer duas cirurgias de reparação, e ainda vinha fazendo tratamento de fisioterapia pélvica.

Esse primeiro relato repercutiu e fez emergir uma dezena de outros, como é comum em casos de abuso sexual, já que as vítimas têm receio de denunciar o abusador. Dias depois da veiculação da reportagem, outras quatro pacientes – entre elas, Cris – deram entrevista à emissora, todas sob condição de anonimato, por medo de se expor. Contavam essencialmente a mesma história: diziam ter sido dopadas e estupradas pelo médico na clínica do Tatuapé. Todas afirmaram ainda sofrer com as sequelas do abuso. Dali a um mês, o número de denunciantes já chegava a dez, de acordo com reportagens publicadas na imprensa.

Ao portal Metrópoles, uma babá de 41 anos contou que, em 2011, durante uma consulta para retirada de cistos, foi apalpada por trás por Berchielli. Segundo ela, o médico cortava as pontas das luvas e usava um dos dedos descobertos para tocar as partes íntimas dela. Por achar que era a única vítima, e que não seria ouvida, a babá passou mais de dez anos sem tocar no assunto. Resolveu contar sua história depois de ver outras mulheres fazendo o mesmo.

Uma auxiliar de enfermagem de 29 anos contou ao Metrópoles que, depois de ser operada por Berchielli, contraiu o vírus do HPV e passou a sentir dores intensas e sangramento. “O médico me disse que eu tinha menstruado durante a cirurgia.” A dor era tão aguda que ela deixou de comer por medo de ter que ir ao banheiro e emagreceu 17 kg. Dois meses depois, notou uma verruga no local onde havia sido operada. Chegou a procurar um pronto-socorro, mas, com vergonha de fazer uma biópsia, não prosseguiu com os exames. No começo de 2022, conforme a dor piorava, ela retornou à clínica de Berchielli, dessa vez acompanhada da mãe. Ela diz que o médico, depois de fazer perguntas indiscretas como “você gosta de sexo anal?”, recomendou uma nova cirurgia. Assim foi feito. A paciente foi novamente sedada e operada, e novamente acordou com dores e sangramentos. Sem ter clareza de que estava sendo abusada, ela se submeteu ainda a outros dois procedimentos, sempre na esperança de corrigir o anterior. Demorou a entender o que havia acontecido.

Cris também ficou com graves sequelas físicas, que a impediram, por mais de dois anos, de ter qualquer relação sexual. Durante esse período, ela usava uma fralda 24 horas por dia. Foi preciso uma série de tratamentos alternativos, como eletrochoques e fisioterapia, para que voltasse a ter uma vida normal. Em 2023, depois de contar sua história à imprensa, Cris foi procurada por várias mulheres que diziam ter sido abusadas por Berchielli e resolveu criar um grupo de WhatsApp reunindo-as. Eram 25, ao todo. Juntas, elas passaram a fazer reuniões virtuais para conversar e desabafar. Uma das histórias que mais a comoveu foi a de um homem que descobriu no leito de morte da esposa, com quem foi casado por 25 anos, que ela havia sido estuprada pelo médico. Ele disse ter perguntado a ela: “Por que você guardou esse segredo por tanto tempo?” Ela respondeu que nenhum homem iria continuar casado com uma mulher que havia sofrido um abuso como esse.

Uma das mulheres que participa do grupo conta que tinha 15 anos de idade quando foi estuprada por Berchielli, em 2000. Ela concordou em dar entrevista à piauí, mas depois voltou atrás: ”Não estou mais a fim, ele está aí solto, quero zerar esse assunto.” O mesmo roteiro se repetiu com outras vítimas. Elas aceitaram conversar sob condição de anonimato, depois desistiram, lamentando que as denúncias “não tinham dado em nada até hoje”.

Foi só depois de o caso se tornar público que as instituições começaram a agir. Em março de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu, por unanimidade, interditar cautelarmente o exercício profissional de Paulo Augusto Berchielli. Em outubro de 2024, Cris foi convocada pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) a depor sobre o caso. Depois de ser adiado, o depoimento aconteceu, finalmente, em janeiro de 2025. A Corregedoria da Polícia Civil, por sua vez, afastou a delegada e as duas escrivãs que atenderam Cris na 5ª Delegacia de Defesa da Mulher.

Na Justiça, a primeira audiência de Cris ocorreu somente em novembro de 2024. Durante seis horas, em um depoimento por videochamada, ela relatou em detalhes tudo o que se lembrava daquela quinta-feira, 26 de agosto de 2021. Os comprimidos. A maca. A dor. O sangue. O cheiro do pano. O zíper aberto. Segundo o sobrinho de Cris, que advoga para ela no processo, a juíza enxugou os olhos com discrição enquanto ouvia o depoimento. A promotora sugeriu uma pausa para que Cris respirasse. E o advogado de Berchielli, segundo ele, abaixou a cabeça, sem esboçar nenhuma pergunta depois de ouví-la.

O processo corre em segredo de Justiça, como é obrigatório em casos de violência sexual. Cris, no entanto, defende que o sigilo seja derrubado. Seus advogados chegaram a pleitear isso, mas não foram atendidos. “Eu não quero segredo de Justiça. Quero justiça. E quero que o mundo saiba o que ele fez”, diz Cris. A primeira mulher que denunciou Berchielli na imprensa também enfrenta os tribunais. Seu processo, igualmente, corre sob sigilo.

Enquanto aguarda o desfecho dos processos, o médico vive com a esposa e as duas filhas em um bairro de classe alta de São Paulo. Por coincidência, a decisão do CFM que suspendeu sua licença profissional expirou na quarta-feira (13), dois dias depois de a Justiça condená-lo a doze anos de prisão. À piauí, o Cremesp afirmou que, como a suspensão já havia sido prorrogada até o limite permitido pelo regulamento da categoria, ela não poderá ser prorrogada de novo. O médico, portanto, está liberado para voltar a clinicar, se assim desejar. “Vale ressaltar que, mesmo com o término da interdição, as apurações seguem em andamento e correm sob sigilo determinado por lei”, ressaltou o Cremesp, em nota. Procurado, o CFM confirmou que a suspensão do médico terminou esta semana, mas não informou se há uma investigação em curso no conselho federal. A piauí tentou estabelecer contato com Berchielli e seus advogados, mas não obteve resposta.

Depois do trauma, Cris está cursando sua terceira graduação, dessa vez em direito (ela é formada em enfermagem e engenharia de produção). O calvário que enfrentou na Justiça foi um dos motivos para que decidisse começar essa faculdade e conhecer melhor as leis. Em maio, ela concluiu um estágio na Defensoria Pública de São Paulo e agora pretende estagiar no Ministério Público. Algumas noites, ela ainda acorda com pesadelos.


¹ O nome da vítima foi omitido, a seu pedido.





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