Vicente Serejo
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Chega-se a um tempo, Senhor Redator, tangido pelos anos, que os dias nos negam tudo, até as novidades. E ficamos prisioneiros dos mexericos daqui e dali, próprios da vida aldeã e pachorrenta. Lembro a figura do professor Sebastião Gurgel que, algumas manhãs, surgia, discreto, silencioso e circunspecto por entre as prateleiras da livraria Cortez. Leitor erudito, mas de uma sisudez invencível, a não ser quando este cronista, no seu velho atrevimento de repórter curioso, resolvia provocá-lo.
Sabia do seu requinte nascido de cultura afrancesada e sólida, pelas referências de Sanderson Negreiros à sua biblioteca particular. Estava na mesa de vidros e reparei que folheava uma edição recente de ‘O Homem sem Qualidades’, de Roberto Mussil. Provoquei. Ele, antes, fez uma pausa e depois respondeu sobre aquele clássico de um autor austríaco. Não foi além. Sabia que não adiantaria muito ir além de uma resposta ligeira. Ele notou que estava diante de um leigo. E voltou à sua leitura.
Anos depois, encontrei uma citação de Mussil num ensaio francês, mas traduzido no Brasil, no qual adverte: “Não há nenhum pensamento importante que a burrice não saiba usar, ela é móvel para todos os lados e pode vestir todos os trajes da verdade. A verdade, porém, tem apenas um vestido de cada vez e só um caminho, e está sempre em desvantagem”. Estava ali, quem sabe, a razão da sua gentileza. A frase acendeu o desejo. Hoje o clássico de Mussil vive aqui, mas sem domínio de leitura.
A burrice, Senhor Redator, pode até ser um mal de origem. Como a vaidade e a prepotência. Mas, a desinformação é sempre um caminho fácil para se ser ou ficar burro, com todo respeito à dura vida dos muares. Imagino, então, o que poderá ter provocado a peste da desinformação que fez deste país um povo desinformado. E acrescente-se à desinformação, o furor das redes sociais atoladas num jogo promíscuo de juízos de valor nascidos de extremos que perderam o centro para boa visão crítica.
Julgamos uns aos outros no tribunal da opinião pública e apedrejamos o Supremo Tribunal Federal. Mas, mesmo nos excessos, os golpistas não subjugaram a Corte e foi o que nos salvou. No novo modelo, o objetivo não é revogar o voto, mas conquistar o Senado e a Câmara e, a partir daí, com eleitos não democráticos, manietar o Executivo e o Judiciário, revogando os pesos e contrapesos que regulam o estado democrático de direito, como nas mais sólidas experiências do mundo livre.
Os extremos são inférteis. Pior: são inservíveis e perniciosos à Democracia. Não custa repetir: a Democracia, é velha lição, não ensina apenas o direito à liberdade de expressão. Impõe, pela própria natureza, o insubstituível dever de também aceitar a livre manifestação de quem defende o contrário. No exercício que só se consagra, ampla e fortemente, no livre atrito das ideias e não como licença para impor o “pensamento desejante” do ditador, a máscara dos novos monstros. O perigo está vivo.
PALCO
ACERVO – Não altera, no RN, o poder do ex-senador José Agripino, com a Federação que vai do União Brasil aos Progressistas. Foi Agripino, afinal, o articulador das vitórias em Natal e Mossoró.
BASES – Fonte de Brasília argumenta com a força das bases: ele teve capacidade de atrair o prefeito Paulinho Freire e o prefeito Alysson Bezerra. Natal e Mossoró, os dois maiores eleitorados do estado.
PODER – O retrato irretocável de José Mujica, ex-presidente do Uruguai, pintado com as palavras pelo filósofo e historiador Mario Sergio Cortella: “Ele teve o poder, mas o poder nunca conseguiu tê-lo”.
CONVERSÃO – Divaldo Franco foi uma das duas grandes forças para a conversão de Sanderson Negreiros à espiritualidade que viveu nas duas últimas décadas de sua vida. A outra foi Chico Xavier.
MAIS – Esteve com Divaldo Franco aqui em Natal, mas nunca disse se teria visitado a ‘Mansão do Caminho’, em Salvador. Divaldo morreu ontem, aos 98 anos. Foi sempre de uma lucidez grandiosa.
CIFRADO – A gratidão deste cronista, outra vez, a Alberto Serejo e Márcio Melo Lima, esses dois irmãos que sempre chegam. Talvez por isso a solidão fuja pela primeira porta que encontra aberta.
POESIA – De Mário Quintana, essa lição de grandeza: “Não te irrites, por mais que te fizerem. / Estuda, a frio, coração alheio. / Farás assim, do mal que te querem, / teu mais amável e sutil recreio”.
VIDA – De Nino, o filósofo melancólico do Beco da Lama, provocado sobre a vida: “Vivo de mim mesmo. Das minhas pequenas coragens e dos meus grandes medos, se, não tê-los, seria insuportável”.
CAMARIM
CASCUDO – O reitor José Daniel Diniz Melo lança, hoje, às 16h, no auditório da Reitoria, um livro inédito de Câmara Cascudo, desde 1956, ‘Ruas de Natal’. E a quinta edição da sua ‘História da Cidade do Natal’. Câmara Cascudo ministrou a aula magna de instalação da UFRN, dia 21 de março de 1959.
ORELHAS – Cassiano Arruda Câmara humaniza essas ruas, íntimas de Cascudo, ao escrever que atribui a Daliana: “a deferência a seu insuspeito testemunho dos tempos em que percorri para Cascudo as ruas da Natal que não mais existe, mas que resta preservada na obra do historiador da cidade”.
ENSAIO – Perfeito o convite a Raimundo Arrais, professor-titular do Departamento de História da UFRN. No ensaio de abertura, rico de informações, revela o autor e a cidade de forma circunstanciada ao contar, muito bem, a história de um livro que levou sete décadas para chegar aos olhos do leitor.
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