“Quanto ao réu Jair Messias Bolsonaro, tenho por comprovado que praticou os crimes a ele imputados como líder da organização criminosa.” Proferida por Cármen Lúcia às 15h59 de quinta-feira (11), a frase condenou o ex-presidente à prisão pela tentativa frustrada de golpe de Estado. Um acontecimento histórico, sem precedentes na história brasileira, mas recebido com o silêncio solene de um tribunal superior. Durante as pausas da ministra, ouvia-se apenas o som da digitação rápida em teclados, sussurros de jornalistas, cliques de fotos. Os outros quatro ministros que compõem a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) permaneciam impassíveis, com os olhos pousados sobre suas respectivas mesas. Como uma estátua de cera, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, não moveu um músculo ao ouvir a fala de Cármen Lúcia. Na terceira fileira do plenário, um analista jurídico jogava Sudoku no celular, indiferente ao que acontecia. No corredor do lado de fora, dois funcionários da copa reclamavam de seus supervisores.

Nenhum grito, nenhum protesto, nenhum lamento audível. “Jair Messias Bolsonaro praticou os crimes, na posição de líder da organização criminosa. Não ficou no mundo das ideias. Ele executou”, prosseguiu Cármen Lúcia. Foi o terceiro voto a favor da condenação, dentre cinco, formando maioria contra o réu. Pouco depois, Paulo Amador Bueno, um dos advogados de Bolsonaro, deixou o plenário. “Preciso resolver umas coisas na rua, volto mais tarde. Não vou falar agora. Vou falar na coletiva”, disse aos repórteres que o seguiram. Celso Vilardi, o outro advogado, não compareceu à sessão, assim como Bolsonaro.

Luiz Fux, a essa altura, já estava nos fundos do plenário, onde há uma sala com comes e bebes para os ministros aguentarem as longuíssimas sessões de julgamento. Ali, eles dispõem de queijo e presunto enrolados, frutas variadas, sucos. A sessão de quarta-feira (10), monopolizada por Fux, se arrastou por quase catorze horas. Nesta quinta-feira, foram pouco mais de sete, num clima um tanto mais ameno, já que os ministros que proferiram votos – Cármen Lúcia e Cristiano Zanin – permitiram aos colegas que os interrompessem, incentivando diálogos amigáveis.

A votação hoje deveria ter começado pela manhã, mas o prolongamento imprevisto do solilóquio de Fux ontem à noite fez com que ela fosse adiada para as duas da tarde. Muitos jornalistas aparentavam exaustão ao adentrar o Anexo II do STF. Embarcavam no elevador em grupos de cinco, subindo até o terceiro andar do prédio, onde fica o plenário da Primeira Turma. Às 14h15, todas as cadeiras já haviam sido ocupadas, com exceção de algumas reservadas a integrantes dos gabinetes dos ministros e do cerimonial. Às 14h22, todos ficaram de pé para o início da sessão. Como um turista, Gilmar Mendes, ministro da Segunda, e não da Primeira Turma, sentou-se para assistir aos colegas.

“Aqui, hoje, pulsa o Brasil que me dói. É quase um encontro do Brasil com seu passado, seu presente e seu futuro”, disse Cármen Lúcia no início de seu voto, ciente de que o inscrevia na história. Tinha à sua frente um catatau de 356 páginas, mas avisou que o resumiria. Gilmar observava tomando goles de café, servido pelos mesmos garçons que atendiam aos ministros da Primeira Turma. Para os demais presentes na sala, bebidas foram proibidas. “Meu tutor”, disse Flávio Dino, a certa altura, mirando o decano do STF à sua frente.

“Mesmo que desejassem destruir mil vezes o nosso prédio, reconstruiremos como fizemos agora. Graças à tenacidade dos que respeitam as constituições”, disse Cármen Lúcia, em referência ao 8 de janeiro. Os jornalistas no fundo do plenário reclamaram do baixo som e do calor que fazia naquele ambiente abarrotado, de carpete azul e luz branca. Era um dia quente, típico da seca brasiliense. Umidade de 20%, o termômetro marcando 32 ºC.

Alexandre de Moraes, sentado imediatamente à direita da ministra, pediu a palavra e reforçou os termos da acusação contra os oito réus. “Nos autos está muito claro, mas acho importante deixar claro para a sociedade que não foi um domingo no parque, não foi um passeio na Disney”, disse, também sobre o 8 de janeiro. Em seguida, repetiu o argumento, embalado por outra analogia: “Não foi combustão espontânea, não foram baderneiros descoordenados que ao som do flautista fizeram fila e destruíram as sedes dos Três Poderes”. Fux, que na véspera dissera o contrário, ouviu o colega sem manifestar reação.

Moraes ainda exibiu, nos dois telões do plenário, vídeos e imagens de manifestações bolsonaristas. Nelas, viam-se faixas pedindo intervenção militar e “Bolsonaro presidente”. O ministro, nesse momento, apontou para o projetor com o dedo em riste: “Não está escrito Mauro Cid presidente.” A observação provocou risos na plateia. Todos entenderam se tratar de um deboche com Fux, que, em seu voto, optou por absolver Bolsonaro e condenar Mauro Cid – o ex-ajudante de ordens da Presidência convertido em delator do golpe.

Quando Cármen Lúcia retomou a fala, Moraes se virou para a direita e deu uma piscadela para Gilmar Mendes. Depois olhou para Fux, situado na sua diagonal, pegou o celular e se recostou na cadeira. O mais cabeludo dos ministros ainda sofreu outras espezinhadas ao longo da tarde. Dino, por exemplo, reclamou do que chamou de “hermenêutica do boi fatiado”. Moraes, ao ouvir a expressão, gargalhou. “Se você fatia o boi e pergunta pra cada parte se ela é o boi, a conclusão é de que nunca existiu boi”, explicou Dino. “Pois é”, emendou Moraes, rindo. Tradução: o boi é o golpe de Estado, e Fux, o analista de fatias.

Zanin foi o quarto voto a favor da condenação, fechando o placar de 4 a 1. Bolsonaro foi sentenciado a 27 anos e 3 meses de prisão; Braga Netto, a 26; Anderson Torres e Almir Garnier Santos; a 24; Augusto Heleno, a 21; Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, a 19. Alexandre Ramagem, a 16 anos, um mês e quinze dias; Mauro Cid, graças aos benefícios da delação premiada, recebeu pena de apenas 2 anos de prisão, que será cumprida em regime aberto. Os outros condenados cumprirão a pena em regime fechado, inicialmente.

“Foi perfeito”, disse um sorridente Ivan Valente (Psol-SP), na antessala do plenário, pouco depois de Cármen Lúcia concluir o voto pela condenação. O deputado assistiu ao julgamento na companhia de outros parlamentares. Enquanto isso, Matheus Milanez, advogado de Heleno, extravasava a insatisfação. “Eles falam muito das provas. Falam que têm várias provas, mas não mostram. Aí é fácil”, ele disse à piauí, fora do plenário. “Eu quase pedi uma questão de ordem na fala da Cármen, porque ela disse que o Heleno participou de várias reuniões [citadas na acusação da PGR] . Foi só uma.”

Milanez se tornou um dos rostos mais célebres do julgamento. Virou meme quando disse a Moraes, num dos interrogatórios, em junho, que queria tempo para “minimamente jantar” (recebeu, de volta, uma tirada do ministro). Não conseguiu salvar o cliente da condenação, mas diz que, depois do episódio inusitado, seu escritório de advocacia bombou. Na primeira semana de julgamento, segundo ele, recebeu mais de dez clientes interessados. “Mas quando eles viram o valor [do honorário], desistiram”, disse, rindo, na quarta-feira (10).

A conversa se deu em torno de um cafézinho. Milanez papeava cordialmente com alguns jornalistas. Uma repórter comentou que, por pior que fosse o desfecho do julgamento, ele poderia comemorar que seu passe havia aumentado. “Deus te ouça”, respondeu o advogado. Sua esposa, que estava a seu lado, pegou o embalo: “Vamos para a Europa!”





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