Há carros de luxo, e há o Lamborghini Urus. Fabricado na Itália desde 2017, o SUV é capaz de sair da inércia para uma velocidade de 100 km/h em apenas 3,6 segundos. Já foi visto em posse de celebridades como Kanye West e Cristiano Ronaldo. No Brasil, o veículo ganhou notoriedade de forma pouco lisonjeira: foi o pivô da prisão de Deolane Bezerra, em setembro do ano passado. A Polícia Civil descobriu que a advogada e influenciadora havia comprado um Lamborghini Urus por 3,4 milhões de reais, pagos à vista, de Darwin Henrique da Silva Filho, dono da casa de apostas Esportes da Sorte. Para os investigadores, que já vinham monitorando transações suspeitas de Deolane, o carro serviu para confirmar que ela vinha praticando lavagem de dinheiro.
Esse foi um dos principais pontos que embasaram o pedido de indiciamento de Deolane, apresentado no relatório final da CPI das Bets, nesta terça-feira (10). A advogada é acusada de praticar contravenções penais de jogo de azar, loteria não autorizada, estelionato, lavagem de dinheiro e participação em organização criminosa. O relatório, que inclui outras quinze pessoas, foi elaborado pelos senadores Soraya Thronicke (Podemos-MS) e Izalci Lucas (PL-DF). O texto ainda vai a votação. Se aprovado, deve ser encaminhado ao Ministério Público, que poderá abrir denúncia.
A principal suspeita pairando sobre Deolane é de que ela ajudou a lavar milhões de reais do jogo do bicho em Pernambuco, sua terra natal. Darwin, de quem a advogada comprou o carro de luxo, é filho do bicheiro pernambucano Darwin Henrique Silva. A aquisição milionária se somou a outras transações suspeitas que já haviam sido detectadas pelo Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Como mostrou uma reportagem da piauí em outubro do ano passado, Deolane, sua mãe e suas irmãs fizeram movimentações de dinheiro consideradas incondizentes com suas rendas. Em apenas dois anos, o patrimônio imobiliário da família cresceu de 4,7 milhões para 16,7 milhões de reais.
O relatório da CPI afirma que as operações financeiras de Deolane não têm justificativa econômica plausível. “A utilização de bens de luxo como forma de conversão e escoamento de valores provenientes de atividades ilegais é uma estratégia comum em esquemas de lavagem de dinheiro, uma vez que permite a reinserção do capital no sistema econômico formal de maneira discreta”, diz o texto, depois de mencionar a compra do Lamborghini.
“A Deolane foi presa porque ela comprou um carro, Lamborghini Urus”, disse a advogada, referindo-se a si mesma na terceira pessoa, em uma live no Instagram em janeiro deste ano. Ela foi às redes se defender, meses depois de ter saído da prisão. “Eu adquiri um veículo de alto valor, mas não vendi. Em setembro [de 2024] eu juntei petição informando que o veículo estava à disposição da Justiça e não teve decisão sobre isso. Em 29 de novembro eu reiterei que o carro se encontra à disposição. Só ir ao Detran que o carro está no meu nome e está na minha casa.” Deolane nega ter pagado à vista. “Eu não paguei em espécie. Foram divididos em quatro parcelas. Como não posso comprar um carro de 3 milhões de reais se eu declarei 33 milhões de reais só em uma das [minhas] empresas?”
As transações de ao menos uma dessas empresas, a Bezerra Publicidade e Comunicação, criada em 2021, também chamaram a atenção da CPI. Segundo o relatório, ela recebeu 3,2 milhões de reais da Pay Brokers, uma instituição de pagamentos online, entre novembro de 2022 e maio de 2023. A transferência, diz o relatório, reforça a suspeita de que a empresa de Deolane atuou como intermediária no esquema, dissimulando o dinheiro que era arrecadado com jogos de azar. A Pay Brokers, assim como a BPAY, é usada por donos de bets para fazer as transações entre os clientes e suas plataformas de apostas online.
Ainda segundo o relatório da CPI, a Bezerra Publicidade movimentou 19 milhões de reais entre 2023 e 2024 com padrões irregulares e valores incondizentes com o perfil da empresa. A XP Investimentos diz ter recusado abrir uma conta para Deolane (tanto de pessoa física quanto jurídica) devido à sua estranha evolução patrimonial, de 300 mil reais para 27 milhões em apenas um ano, e às investigações em curso por lavagem de dinheiro.
O relatório da CPI também aponta que os bens sorteados por Deolane no Instagram, por meio de rifas, valem, somados, 880 mil reais (ela rifou, entre outros objetos, um Porsche 911 Cabriolet, modelo 2021). A advogada alega que os prêmios não pertenciam a ela, mas isso, aos olhos da CPI, não elimina a suspeita de que as rifas serviram para lavar dinheiro do jogo do bicho. O fato de que esses sorteios eram realizados por meio da Edscap, empresa que pertence ao grupo HSF, operador da Esportes da Sorte, reforça a hipótese.
Outro indício de lavagem de dinheiro é um saque de 2 milhões de reais feito por Deolane a pretexto de comprar um imóvel (o relatório da CPI não especifica a data em que isso aconteceu; diz apenas que foi entre 2023 e 2024). Não há, contudo, registro de propriedade do vendedor do imóvel. A compra de bens de alto valor sem a devida documentação é típica de esquemas de lavagem de dinheiro, pois ajuda a dissimular a origem dos valores.
Também foram detectadas movimentações vultosas entre Deolane e outras empresas de pagamento online. Num intervalo de seis meses, entre abril e setembro de 2023, a advogada recebeu 1 milhão de reais da Viatech Bank e 907 mil reais da Cash Pay Meios de Pagamento. Essa dinheirama foi transferida de forma fracionada, por meio de uma centena de operações via Pix – o que, para os investigadores, pode ter sido uma estratégia para evitar que as transações chamassem a atenção dos órgãos de monitoramento financeiro. O relatório da CPI também cita que Deolane tinha 2,8 milhões de reais aplicados em investimentos, valor que, segundo a investigação, é incompatível com seus rendimentos.
O relatório da CPI das Bets ainda analisou as movimentações financeiras da mãe de Deolane, Solange Alves Bezerra Santos. Ela também é suspeita de ter praticado lavagem de dinheiro oriundo de jogos de azar legais e ilegais, e foi presa junto com a filha, em setembro. Segundo um relatório produzido pelo Coaf, Solange manteve um padrão suspeito de transferências bancárias entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023. Ela fez depósitos em nome da Pay Brokers, usando diferentes CNPJs da empresa. Transferiu 167 mil reais por meio de 25 transações, 90 mil reais por meio de 22 transações, e 34 mil reais por meio de 7 transações. Além disso, mandou 5,4 mil reais para a PIXS Brasil, uma empresa que intermedeia pagamentos via Pix entre as bets e seus clientes. A Pay Brokers e a PIXS Brasil são empresas irmãs – o dono de uma é sócio da outra –, o que fortalece a suspeita de que foram criadas só para movimentar dinheiro sujo. Segundo a CPI, funcionavam como uma “roda-viva” financeira, repassando valores entre si para dificultar o rastreio do dinheiro.
A investigação mostra que Solange usou também a conta do seu neto menor de idade, o que pode ter sido feito no intuito de dificultar o rastreamento do dinheiro. A CPI identificou também indícios de lavagem de dinheiro, possível exploração de jogos ilegais e crimes contra a ordem tributária na conta de Daniele Bezerra Santos, irmã de Deolane. Ela declara uma renda mensal de 2,5 mil reais, mas movimentou 1,8 milhão de reais entre dezembro de 2022 e agosto de 2024. Uma das transações suspeitas foi um depósito de 22,7 mil reais em favor de Daniele feito pela Brabet, empresa de apostas online envolvida em crimes de fraude. O Coaf também detectou um aumento repentino no volume de transações de Daniele, incluindo transferências a familiares e resgates de investimentos de curto prazo.
A irmã de Deolane foi investigada pela Polícia Civil de São Paulo por possível sonegação fiscal relacionada à Bezerra Publicidade. Outra irmã citada no relatório é Dayanne Bezerra Santos. Ela teve cinco operações financeiras atípicas reportadas ao Coaf entre dezembro de 2022 e agosto de 2024, movimentando 29,2 milhões de reais. Embora declare entre 20,5 mil reais e 21,4 mil reais de renda mensal, Dayanne recebeu 696 mil reais da Pagsmile e 1,1 milhão de reais da Via Tech Bank. Os valores, tão logo entravam na conta bancária, eram gastos. Parte do dinheiro foi usada na compra de carros. Houve também uma tentativa – frustrada – de sacar 2 milhões de reais para supostamente comprar um imóvel. Dayanne teve contas no Itaú encerradas em 2023 por suspeita de lavagem de dinheiro.
A piauí tentou contato com Deolane, suas duas irmãs e sua mãe, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.