O trabalho de azulejaria de Luiz Domingues (1926-2021), português que viveu e produziu por mais de cinco décadas em Pernambuco, permeia a paisagem do Recife e de várias cidades do Nordeste e Norte do Brasil. É visto e vivenciado diariamente, ainda que de forma silenciosa, pois poucas pessoas conhecem a origem ou mesmo a autoria daquelas criações. Esse desconhecimento pode ser atribuído a dois fatores que, na verdade, são correlatos: a ideia de Seu Luiz de que não era artista, mas artesão, e a perspectiva de que a autoria de uma obra pertence apenas a quem concebe e não a quem, também, executa. Na contramão desse apagamento, a artista-educadora Laís Domingues, sua neta, idealizou o Memorial Luiz Domingues, projeto de catalogação, digitalização e compartilhamento das criações do mestre azulejista.
Quando se mudou para o Brasil, em 1954, vindo de Coimbra, onde trabalhava em uma fábrica de louças, Luiz Domingues trouxe não só a esperança de uma vida melhor, como a tradição do seu povo na azulejaria decorada. Em Portugal, a azulejaria se desenvolveu como uma forma de arte e, devido à colonização, deixou marcas no Brasil, onde também adquiriu identidade própria. Em Pernambuco, seu novo lar, ele trabalhou na fábrica de cerâmicas da família Brennand até se lançar no seu próprio empreendimento, produzindo para diversos projetos, de pequeno, médio e grande porte.
Seus azulejos estão presentes em muitas casas e também em prédios icônicos do modernismo pernambucano, como o Edf. Acaiaca, em Boa Viagem, projetado por Delfim Amorim, seu conterrâneo. Também foram pintados por ele os painéis da Padaria Santa Cruz e do Edf. Joaquim Nabuco intitulado Joaquim Nabuco e a Abolição da Escravatura , assinado por Abelardo da Hora; e Revolução pernambucana, de Corbiniano Lins, localizado na Avenida Cruz Cabugá. São muitas as obras que contaram com a contribuição de Luiz Domingues ou que foram inteiramente criadas por ele que, no entanto, não se considerava um artista. Para ele, o mais importante “era fazer o freguês feliz”, como disse uma vez em entrevista, mais do que ser reconhecido.
“Meu avô veio de uma família muito pobre e ser artista não parecia uma possibilidade. Assim, ele nunca se considerou um artista. Nem mesmo permitia que o chamassem assim, quando, na verdade, ele sempre foi. Então, esse projeto surgiu também como uma forma de contar a história de quem dedicou a vida a produzir arte, mesmo que silenciosamente. Há muitos trabalhos que meu avô sequer assinou, por exemplo. Então, também é uma espécie de resgate e de questionamento das estruturas que fazem alguém ser chamado ou não de artista”, enfatiza Laís Domingues.
Ela reforça a dificuldade da legitimação da produção criativa, em especial para aqueles que se dedicam a trabalhos manuais e historicamente pouco estimados no campo da arte, como a azulejaria. O processo de valorização e resgate do trabalho do avô tem mobilizado Laís há quase uma década. Em 2016, a artista promoveu uma exposição em torno das obras de Luiz Domingues, iniciativa que já demarcou o entendimento da produção do mestre como artística e que ganhou ainda mais importância com o seu falecimento em 2021, em decorrência da Covid-19.
MEMÓRIA
Com o Memorial Luiz Domingues, os projetos de azulejaria do mestre português terão, pela primeira vez, uma catalogação. Há meses, Laís Domingues tem recuperado os desenhos do avô feitos em papel vegetal – centenas de desenhos reunidos em sete pastas. Os desenhos em azulejos são feitos em camadas, com serigrafia. Parte da ação de Laís e da equipe, neste primeiro momento, é montar esse “quebra-cabeça” de cada obra, processo que tem sido registrado em fotografias e vídeos. Uma vez finalizada esta etapa, uma museóloga irá higienizar os trabalhos, catalogá-los e digitalizá-los.
O projeto quer, ainda, mobilizar a sociedade civil para ajudar no mapeamento dessas obras. Luiz Domingues produziu azulejos para muitas residências, principalmente até os anos 1980, quando a azulejaria ainda era característica em muitas casas. O Memorial Luiz Domingues deseja localizar onde estão essas obras, estabelecendo uma relação afetiva com os locais que não se restringem a Pernambuco, onde o mestre produziu para várias cidades. Já foram localizados trabalhos dele na Paraíba, em Alagoas, em Belém, no Pará, entre outras. Caso identifiquem alguma obra que considerem ser do português, as pessoas podem entrar em contato pelo perfil do Memorial Luiz Domingues no Instagram (@memorialluizdomingues), onde também estão sendo compartilhadas as etapas do projeto.
“Os azulejos estão muito presentes na arquitetura brasileira e trazem essa ideia de aconchego, de personalidade, de memória e afeto. Recentemente, temos visto um interesse renovado nessa tradição e, mesmo para pessoas que não moram mais em lugares com azulejos, a estética evoca lembranças muito fortes, seja das casas onde cresceram, de familiares etc. O Memorial Luiz Domingues quer que as pessoas olhem essas criações, não só do meu avô, e se perguntem sobre quem fez”, reforça Laís Domingues.
Além do mapeamento e catalogação, o projeto prevê a produção de um catálogo virtual e impresso, além de uma roda de conversa sobre memória, patrimônio, arquitetura e cidade.
O Memorial Luiz Domingues conta com incentivo do Sistema de Incentivo à Cultura – SIC, Fundação da Cidade do Recife, Secretaria de Cultura e Prefeitura do Recife.