As mesmas pedras que serviram de referência para vaqueiros do século XVIII hoje guiam aventureiros munidos de GPS e conhecimento geológico. Em Acari, município do Seridó potiguar, trilhas centenárias foram reconfiguradas como verdadeiros roteiros interpretativos, conectando a história da Terra — gravada no Granito de Acari — com práticas sertanejas contemporâneas.

A transformação não aconteceu por acaso. Com o reconhecimento do Geoparque Seridó pela UNESCO em 2022, a cidade descobriu que suas formações rochosas de 580 milhões de anos poderiam ser mais que paisagem: poderiam ser produto turístico. Desde então, a demanda por roteiros cresceu 40%, impulsionando a capacitação de moradores locais como guias especializados.

“A gente procura relacionar esse contexto ao turismo pedagógico”, explica Adriano Campelo, diretor do Museu Histórico local. Segundo ele, as trilhas são utilizadas para mostrar “a ocupação pré-histórica aqui no interior do Nordeste e consequentemente na região do Seridó de Acari”, com apoio de materiais educativos desenvolvidos em parceria com o Geoparque Seridó.

O paulista que descobriu o Sertão

Arthur Hansen Araújo da Silva tem 26 anos, nasceu em Americana, São Paulo, mas há 12 anos chama Acari de casa. Sua história resume a transformação que vem acontecendo no sertão do Rio Grande do Norte: a descoberta de que as pedras milenares e a paisagem árida podem ser mais atrativas que as praias do litoral.

“Minha família veio conhecer Acari em 2009 porque meu avô nasceu aqui. Acabamos gostando e resolvemos nos mudar”, conta Arthur, que hoje é proprietário da Hansen Ecoturismo, uma das principais empresas de turismo de aventura da região. “Em São Paulo eu fazia trilhas raramente, mas foi aqui que concentrei tudo.”

A Hansen Ecoturismo nasceu quase por acaso em 2020. Arthur sempre praticou atividades de ecoturismo como hobby, mas começou empreendendo com stand-up paddle no Açude Gargalheiras. “Alguns clientes que vinham alugar as pranchas também queriam fazer trilhas. Uma família me procurou perguntando se eu conhecia a trilha da Serra do Pote. Foi o primeiro grupo que levei.”

O boca a boca funcionou. Em menos de um ano, Arthur percebeu que havia demanda suficiente para formalizar o negócio. “Acari não tinha nenhuma agência de receptivo. Tinha agência de viagens, mas nenhuma que trabalhasse especificamente com ecoturismo”, explica.

Trilhas na pedra do mapa | Foto: Arthur Hansen

Trilhas que contam histórias

Diferente do ecoturismo convencional, Acari aposta em trilhas interpretativas, cada uma com identidade própria. A Serra do Minador, com 2,74 km de extensão e vista panorâmica para o Gargalheiras, é conhecida como “a trilha dos mirantes”. Já a Serra das Cruzes, com 1,62 km, leva os visitantes à Capela de Nossa Senhora de Lourdes — e também atrai o público em busca de adrenalina.

Campelo afirma que “na pandemia, ela foi, sem dúvida nenhuma, o ponto mais procurado para trilha”, e acrescenta que “no final de semana, mais de 100 pessoas” chegaram a visitar o local. A trilha proporciona uma vista privilegiada do açude Gargalheiras e da cidade de Acari, com trechos que exigem o uso de cordas e pinos de ferro.

Para o público escolar, duas trilhas se destacam pelo acesso e conteúdo pedagógico: Poço do Arroz e Marmitas do Rio Carnaúba. De acordo com Campelo, “essas duas trilhas que eu falei, Poço do Arroz e Marmitas do Rio Carnaúba, têm melhor acesso para turmas, para levar para escolas, turmas numerosas”. Ele destaca que essas rotas são “adequadas para as trilhas junto [com] escolas”, pois são fáceis, bem sinalizadas e viáveis para grupos grandes.

Arthur confirma a diversidade de opções: “Aqui tem trilha para todo tipo de público. Desde a pessoa que nunca viu isso até quem já fez trilha na Patagônia, foi para outros países escalar montanhas. Tem trilha para todo nível.”

A reinvenção do negócio

Mas o caminho não foi linear para Arthur. Ele passou por uma crise que o obrigou a repensar completamente seu modelo de negócio. “Chegou um momento que parecia que todo mundo já conhecia, não via mais ninguém interessado. Do nada, deu uma parada”, relembra.

A solução veio através de uma mudança radical de foco. Em vez de atender turistas casuais em busca de uma trilha rápida, Arthur decidiu mirar em um público específico: praticantes experientes de montanhismo dispostos a pagar mais por experiências autênticas.

“Hoje minha empresa foca exclusivamente em caminhada de longo curso, em trekking, em trilhas mais difíceis”, explica. “São pessoas que já praticam trilhas há mais tempo, que têm condição financeira boa e estão dispostas a viver essa experiência. Gente que já viajou para Argentina, Chile, que faz trilhas pesadas”, conta.

O produto que simboliza essa mudança é a “Travessia das Corvileiras”, uma trilha de dois dias que Arthur criou como trabalho de conclusão de curso. “É um trekking onde você precisa dormir no meio do mato, acampar para concluir. Algo novo no estado”, descreve.

Os números mostram que a estratégia funcionou. Em 2023, primeiro ano da trilha, Arthur a realizou apenas uma vez. Em 2024, foram três vezes. Este ano, ainda em curso, já foram cinco expedições. “Está aumentando consideravelmente”, comemora.

Bico da Arara:Brenda Letícia é uma das poucas mulheres que atuam como guias de trilhas | Foto: Arthur Hansen

A pioneira das trilhas

Do outro lado da equação está Brenda Letícia, uma das poucas mulheres guias de trilhas do interior do Rio Grande do Norte. Formada em Guia de Turismo desde 2014 e atualmente cursando graduação em Turismo, ela representa a profissionalização do setor.

“Durante o curso de guia, tivemos formação ampla que abordou geologia, fauna, flora e aspectos históricos e culturais”, explica Brenda. “Com isso, consigo conduzir os grupos de forma segura e educativa, despertando o olhar do turista para cada detalhe.”

Seu segmento principal é o turismo de aventura, com especialização na Serra das Cruzes. “É uma experiência única, não apenas pela caminhada, mas pelo espetáculo visual. Do alto, temos visão panorâmica de 360°: é possível contemplar a cidade de Acari, o Açude Gargalheiras e a comunidade que leva o mesmo nome.”

Para Brenda, a trilha da Serra das Cruzes oferece mais que aventura: “É um ponto que une beleza cênica, contato com a natureza e conexão com a história e identidade local.”

Travessia das cordilheiras em Acari | Foto: Arthur Hansen

O desafio de ser mulher

Ser mulher no turismo de aventura traz desafios específicos que Brenda enfrenta com determinação. “O meio das trilhas ainda é, em grande parte, marcado pela presença masculina. Isso faz com que muitas vezes precisemos provar nossa capacidade em dobro.”

Ela já enfrentou olhares de dúvida. “Como se a condução de grupos em ambientes naturais fosse função exclusivamente masculina. Porém, com conhecimento técnico, preparo físico e dedicação, mostro que competência não tem gênero.”

A conquista diária tem um propósito maior. “É gratificante perceber que, ao ocupar esse espaço, inspiro outras mulheres a acreditarem que também podem trilhar esse caminho.”

Açude Gargalheiras | Foto: Arthur Hansen

Ciência nas pedras e economia nos passos

O turismo de trilhas em Acari ganhou força com o reconhecimento do Geoparque Seridó pela UNESCO. Hoje, seis profissionais atuam de forma regular como guias, com apoio de estruturas como a Venda de Janeide (ponto de apoio em Gargalheiras) e hospedagem rural na Fazenda Talhado.

O preço médio por expedição gira em torno de R$ 185,00, incluindo transporte e guia. A melhor época para visitação vai de abril a julho.

Campelo explica que os roteiros se apoiam em materiais educativos vinculados ao Geoparque e ao Museu de Educação Patrimonial. “Essas trilhas associam esses mais variados temas que estão associados nessas trilhas na zona rural de Acari”, afirma.

Arthur trabalha principalmente com agências de outros estados, recebendo grupos fechados de Recife, Ceará, São Paulo e Minas Gerais. “Não é tão comum a pessoa entrar em contato comigo diretamente. Geralmente recebo grupos já fechados.”

A mudança de público também alterou a dinâmica do negócio. Arthur atende no máximo 30 a 40 pessoas por mês, divididas em grupos pequenos. “Não é aquela pessoa que quer vir só fazer uma trilha, tirar foto e ir embora. São pessoas que levam isso como estilo de vida.”

O rigor da seleção

Para garantir a qualidade da experiência, Arthur desenvolveu um processo rigoroso de seleção de clientes. “Eu faço uma verdadeira entrevista”, explica. “Pergunto se tem problema de saúde, quantas trilhas já fez, se tem rotina de atividade física, se tem lesão, se já fez cirurgia, se tem alergia a insetos.”

O objetivo é evitar frustrações. “Quando uma pessoa totalmente leiga se depara com algo difícil, aquilo acaba frustrando ela. A experiência que é para ser boa, para ter contato com a natureza, para sair com visão mais ambientalista, ela vai sair frustrada.”

A estratégia tem dado resultado. “Até hoje, graças a Deus, ninguém se frustrou comigo. Nunca houve esse relato”, afirma Arthur.

Desafios do crescimento

A estrutura de apoio turístico ainda é limitada nos períodos de maior fluxo. “Em períodos festivos de Acari e região, essa infraestrutura não atende”, diz Campelo. Segundo ele, “o turista precisa ir para outra cidade buscar hospedagem para ter que ficar mais dias na região”.

Arthur confirma as limitações. A cidade tem apenas três meios de hospedagem e algumas casas de veraneio. “São poucos quartos. Se tiver um evento hoje em Acari, vai ter que hospedar pessoas em Currais Novos, Parelhas.”

No turismo pedagógico, os problemas são mais visíveis. “Às vezes o restaurante demora muito, o pessoal não se programa, a comida acaba”, relata Arthur.

No caso de visitas com alunos, Campelo explica que é necessário fazer orientações prévias. “A gente orienta essa parte do cuidado e orientamos também junto aos professores para ajudarem na condução dessas turmas”. Ele cita riscos com “animais peçonhentos, como cobras, escorpiões ou aranhas, e também a planta nativa, como a favela e a ortiga”, além da necessidade de manter ordem e atenção diante de turmas com mais de 15 estudantes.

A realidade do Geoparque

Apesar do reconhecimento internacional, Arthur tem uma visão crítica sobre o impacto real do Geoparque Seridó no turismo local. “Vou ser bem sincero: ele não mudou o movimento. Se eu fosse viver só da ideia de geoparque, minha empresa não funcionava.”

Sua análise é técnica e direta. “O geoparque é um consórcio intermunicipal composto por seis municípios. Basicamente, cada município trabalha no sentido de cada um por si. Ainda há uma ausência muito grande de produto formatado.”

O problema, segundo Arthur, é que o público específico do geoturismo – pessoas interessadas em conhecer patrimônio geológico e rochas – simplesmente não está visitando a região. “Esse público não está aqui ainda. Se cada empresa não correr atrás do seu público, essas pessoas não vêm.”

Por outro lado, ele reconhece um segmento que está “bombando”: o turismo pedagógico. “Visitação de escolas nas cidades, nas igrejas, no Açude Gargalheiras. Entra ônibus, sai ônibus. Agora, quando se trata de ecoturismo, é bem mais fraco.”

Arthur estima que recebeu apenas um ou dois casais este ano com o intuito específico de conhecer o geoparque. “Por isso tive que buscar outra alternativa.”

Serra do Minador | Foto: Arthur Hansen

Os números das trilhas

O fluxo de visitantes varia de acordo com o clima e o tipo de trilha. Sobre as rotas pedagógicas, Campelo relata que “em caso de final de semana, chega a trilha dessa a ter quase 50 pessoas”. Ele afirma que, fora do período de inverno, “esse número oscila muito para baixo”.

Já as trilhas de aventura mantêm maior regularidade. “Por semana nós registramos em torno de 30 pessoas, 50 pessoas […] na Serra das Cruzes, por exemplo”. Segundo ele, outras trilhas bastante procuradas são a Serra do Lago Seco e a Serra do Minador, que oferece um mirante com “paisagem privilegiada”.

Arthur confirma que a trilha mais procurada em Acari é a do Bico da Arara e da Serra das Cruzes. “Inclusive, a Travessia das Corvileiras, um dos pontos culminantes é o Bico da Arara. Então passamos pelo Bico da Arara e por outros pontos conhecidos em Acari.”

A questão da acessibilidade

Brenda também levanta uma questão importante sobre inclusão. “Seria muito positivo que as trilhas fossem adaptadas para pessoas com algum tipo de limitação física também pudessem vivenciar essa experiência.”

Sua proposta é concreta: “Melhorias como sinalização adequada, áreas de descanso e trechos adaptados tornariam o turismo de aventura ainda mais inclusivo. O contato com a natureza e a superação que uma trilha proporciona não deveria ser restrito.”

O futuro dos caminhos

A experiência de Arthur, Brenda e Adriano ilustra como Acari está construindo um modelo próprio de turismo de aventura, independente das expectativas iniciais sobre o geoparque. Enquanto o turismo pedagógico cresce exponencialmente, o ecoturismo encontra seu nicho em um público seleto e especializado.

“Aqui consegui desenvolver muita coisa. Consegui fazer bastante roteiros. Passamos por dificuldades, mas conseguimos nos dar bem nessa área”, resume Arthur.

A cidade parece ter encontrado sua vocação: não como destino de massa, mas como laboratório de experiências autênticas para quem busca aventura com propósito. As trilhas de Acari não são apenas caminhos através da caatinga – são rotas de descoberta pessoal em um dos cenários geológicos mais antigos do planeta.

Para Brenda, o futuro passa pela inclusão e profissionalização. Para Arthur, pela manutenção da qualidade e autenticidade que atraem seu público seleto. Para Adriano, pela integração entre educação patrimonial e turismo sustentável.

Todos concordam que Acari tem potencial único, mas que esse potencial precisa ser desenvolvido com cuidado para não perder a essência que o torna especial. O sertão está se reinventando, uma trilha de cada vez.



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