Prato com uma pizza marguerita, que tem molho de tomate, queijo e manjericão

Crédito, NurPhoto via Getty Images

Legenda da foto, A Marguerita é um dos sabores mais tradicionais da pizza napolitana
    • Author, Tamlin Magee
    • Role, BBC Travel

Mas eles não estavam ali para venerar o antigo mártir, e sim por causa de algo tão importante quanto para a identidade da cidade.

Vindos da Bélgica, França, Japão, Coreia do Norte, Canadá e Brasil, esses homens e mulheres são todos aspirantes a pizzaiolos — especialistas na preparação da tradicional pizza italiana — e estão perto de fazer o maior teste de pizza de suas vidas.

Os aprendizes estão na sede da Associazione Verace Pizza Napoletana (AVPN) — Associação da Verdadeira Pizza Napolitana, na tradução livre para o português.

Fundada em 1984, essa organização existe para “promover e proteger” o mais famoso tesouro culinário da cidade, e que foi fundamental para que “a arte de fazer pizza napolitana” se tornasse, há alguns anos, um Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco.

Crédito, Emanuele Di Cesare/AVPN

Legenda da foto, Chefes treinados pela AVPN devem atender aos padrões exatos da associação para fazer a “verdadeira” pizza

De suas origens humildes como uma comida de rua napolitana no fim do século 19, a pizza se tornou um dos pratos mais amados no mundo.

Embora existam dois tipos tradicionais de pizza napolitana — a Marguerita, coberta com molho de tomate, queijo e manjericão fresco, e a Marinara, que leva orégano e alho no lugar do manjericão e não tem queijo — inúmeras variações contemporâneas surgiram nas últimas décadas.

Mas, assim como há critérios rigorosos para definir o que é um champanhe verdadeiro ou um autêntico queijo parmesão, um grupo de “guardiões” da culinária foi formado para garantir que a pizza continue fiel às suas raízes napolitanas, pelo menos se você for chamá-la de uma “verdadeira” pizza.

“Há uma grande conexão entre esse tipo de comida e a alma de Nápoles”, afirma Massimo Di Porzio, vice-presidente da AVPN.

Com sua escola de formação, competições, feiras e até uma grande estátua de bronze em forma de pizza na porta da sua sede, a AVPN se tornou um verdadeiro império da autenticidade da pizza.

Suas diretrizes detalhadas determinam que toda pizza certificada deve conter “um disco arredondado” com borda alta e crosta fofa de no máximo 1 a 2 centímetros. Não pode ter “pontos queimados” e nem “bolhas grandes”.

A pizza também deve ser “macia”, “elástica” e dobrável.

O pizzaiolo não pode usar rolo de massa e nem assadeira. Assar a pizza por mais de 1 minuto e meio é considerado um sacrilégio.

E o resultado final deve ser consumido em até 10 minutos depois de sair do forno.

Crédito, Emanuele Di Cesare/AVPN

Legenda da foto, Durante o treinamento da AVPN, os alunos estudam e colocam em prática os segredos de uma autêntica pizza napolitana

No último dia do curso de treinamento da AVPN, os alunos internacionais testam seus novos conhecimentos sobre pizza.

Eles estudaram técnicas de fermentação e hidratação da massa, os segredos do uso do fermento, a escolha de ingredientes frescos e as proporções ideais entre sal e água.

Eles também praticaram a arte de colocar a pizza no forno — um passo que parece simples, mas é surpreendentemente desafiador —, tudo com o objetivo de assar uma pizza perfeita de forma consistente.

“Eu estava bem nervosa, especialmente quando as pessoas começaram a voltar dos testes”, disse Gemma Eldridge, uma pizzaiola canadense.

“Mas, na verdade, você só fica lá por três minutos. Não dá tempo de ficar nervosa.”

Das 10h às 18h, durante os nove dias de curso, Eldridge e seus colegas pizzaiolos assaram cerca de 40 pizzas por dia como parte do treinamento. Hoje, eles experimentam algumas dessas pizzas de Marguerita enquanto esperam os outros saírem dos testes, sob o olhar de Gino Sorbillo e Paolo Surace, celebridades da pizza.

Os chefes são avaliados em cima de um clássico indiscutível: a Marguerita.

Embora os pizzaiolos aprimorem sua técnica durante o treinamento intensivo, o curso é apenas o primeiro passo para se tornar um mestre da pizza.

O verdadeiro desafio é manter esse padrão em suas próprias pizzarias, quando eles voltam aos países de origem — um teste contínuo durante toda a carreira dos pizzaiolos, caso um dia venham a trabalhar em restaurantes credenciados de pizza napolitana.

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Legenda da foto, O verdadeiro trabalho começa quando os alunos deixam o treinamento da AVPN e abrem suas próprias pizzarias

Apesar de o treinamento estar disponível para qualquer pessoa, a exigência é maior para que um restaurante consiga a certificação.

Primeiro, as pizzarias precisam contratar um pizzaiolo formado pela AVPN. Em seguida, devem preencher uma série de formulários em que se comprometem em “aceitar, respeitar e promover a tradição da pizza napolitana”.

Também precisam fotografar sua cozinha, os equipamentos e ingredientes, além de gravar vídeos do pizzaiolo chefe preparando a massa, montando e assando uma pizza. Todo esse material é enviado para a sede da AVPN, em Nápoles, sem garantia de aprovação.

Até hoje, cerca de 1.000 pizzarias se inscreveram para fazer parte desse clube de elite da pizza e, uma vez certificados, eles podem exibir o selo da AVPN, formando assim uma rede global de pizzaria onde as pessoas sabem que encontrarão a “verdadeira” pizza.

Ainda assim, a fiscalização sobre o restaurante não termina após a certificação.

De tempos em tempos, a AVPN envia “agentes secretos da pizza” em missões para observar os estabelecimentos de forma discreta. Qualquer pizzaria flagrada fora dos padrões de qualidade da associação, corre o risco de perder o credenciamento.

De acordo com um agente de fiscalização, que não pode ser identificado, “o erro mais grave que eu já encontrei foi uma pizza crocante, com uma massa que definitivamente não era aprovada”.

A AVPN verificou o problema e rapidamente removeu esse restaurante da lista de pizzarias credenciadas.

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Legenda da foto, Hoje, turistas do mundo todo vão para Nápoles comer a “verdadeira” pizza

No Japão, uma pizzaria que havia sido expulsa da organização — mas continuou exibindo o certificado — aprendeu a lição da pior forma.

“Nós fomos até Osaka e retiramos o selo”, conta Di Porzio, lembrando que foi acompanhando de um advogado da associação.

Essa missão de definir uma “verdadeira” pizza tem um efeito curioso, segundo Karima Mover-Nocchi, historiadora de alimentos na Universidade de Siena, que sugere que todo o processo é tanto sobre a criação de um mito quanto sobre a preservação de padrões tradicionais.

Ao definir o que é uma “verdadeira pizza”, a AVNP cria um círculo fechado de detentores desse certificado, e toda essa exclusividade só faz aumentar ainda mais o desejo das pessoas de provar a pizza.

“A AVPN não está apenas preservando uma tradição, mas produzindo”, afirma.

“Eles estão elevando a pizza a uma experiência transcendental. Estão protegendo o prato, mas também criando uma mística — e fazem com que você se sinta parte de algo que é duradouro.”

Ainda assim, diante de todo esse drama de missões secretas e fiscalizações de pizzas, é irônico lembrar que esses padrões rigorosos para manter a “tradicional” pizza napolitana nem sempre existiram.

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Legenda da foto, Durante o curso da AVPN, os pizzaiolos aprendem a colocar a pizza no forno, uma tarefa que parece simples, mas exige técnica

De acordo com Di Porzio, séculos atrás, cada pizzaiolo de Nápoles tinha sua própria técnica, geralmente passadas de pai para filho.

Mas, no fim do século 20, diante da proliferação de imitações de baixa qualidade da pizza napolitana, o fundador da AVPN, Antonio Pace, descendente de uma longa linhagem de pizzaiolos, reuniu outras 16 famílias de mestres de pizza para padronizar o que seria uma “verdadeira” pizza.

Houve tropeços ao longo do caminho para as “17 famílias”, como elas são conhecidas.

Uma grande disputa surgiu em torno dos detalhes da fermentação da massa, mas as diretrizes iniciais foram publicadas em 1984, e a AVPN foi oficialmente criada.

Em 1998, a organização se uniu à Universidade Partenope de Nápoles para estudar a ciência da pizza, tecnologias avançadas de panificação e o impacto mais amplo desse alimento, co-criando o Observatório Socioeconômico da Pizza Napolitana.

Em uma conferência anual, os melhores pizzaiolos debatem se as novas descobertas, como avanços na produção de farinha, exigem ajustes nas regulamentações.

Mas, apesar de toda essa precisão e zelo em relação à pizza napolitana, Antonio Puzzi, editor-chefe da revista Pizza e Pasta Italiana, observa que a Itália possui dezenas de diferentes tipos de pizza.

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Legenda da foto, A pizza como é conhecida hoje nasceu como uma simples comida de rua

Existe a pizza napolitana frita, mas também a pizza romana, que é mais crocante do que o estilo napolitana e aberta com rolo em vez de ser esticada à mão.

Há ainda a pizza nel ruoto, feita em assadeiras, a pizzonta frita de Abruzzo, e a uma longa lista de variações de focaccias e pães.

“Existem muitos tipos de pizzas reconhecidos em muitas cidades e em muitos estados”, afirma Puzzi.

“Mas a única representação oficial é a pizza napolitana.”

Mesmo com tantas variedades na Itália, certos deslizes — como pedir uma pizza de frango fora do país — ainda são suficientes para provocar a ira dos italianos.

Um exemplo disso: depois de tentar, sem sucesso, abrir 880 lojas na Itália, a marca americana Domino’s entrou com pedido de falência em 2022, e nunca ousou abrir uma filial em Nápoles.

Contudo, alguns argumentam que os gostos dos italianos estão mudando e que, apesar da aparente rigidez da AVPN, ela parece mais aberta a modificar seus padrões exigentes.

“Se pudermos melhorar algo, nós mudaremos. Somos muito abertos”, afirma Di Porzio.

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Legenda da foto, A pizza frita é outra tradição de Nápoles

Em 2024, Sorbillo, um dos examinadores da AVPN, lançou uma controversa pizza napolitana com recheio estilo havaiano.

Embora críticos como Puzzi descrevam a pizza como uma “provocação”, Sorbillo acredita que há espaço tanto para modernidade quanto para tradição.

“A pizza não para em um determinado ponto, está sempre se desenvolvendo, mudando, sempre há algo a aprender. A pizza de hoje não é a mesma de 40 anos atrás”, afirma.

Apesar de reconhecer que os tempos mudam, Di Porzio afirma que a AVPN recebeu “muitas críticas” ao aceitar, em 2020, que a pizza napolitana pudesse ser assada em fornos elétricos, além dos tradicionais de madeira.

“A decisão irritou os tradicionalistas mais radicais”, disse.

Mesmo assim, à medida que as tendências e os estilos mudam e novos recheios se tornam aceitáveis, Di Porzio e a AVPN acreditam que é importante preservar os métodos tradicionais de preparo.

“Eu sempre digo que a pizza napolitana não é necessariamente a melhor, mas é a pizza que tem suas raízes mais fortes na cultura. Então, é uma habilidade que nós precisamos ensinar e preservar.”



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