Sueli Maxakali grava uma vídeo-carta para apresentar sua família e ela mesma ao seu pai, Luiz Kaiowá. Os dois perderam contato quando Sueli tinha dois meses de idade, e mais tarde ela veio a saber que o pai vivia agora a centenas de quilômetros de distância. A gravação poderia ter só essa finalidade prática, mas transcende o objetivo inicial ao ser o primeiro plano do documentário Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá, codirigido por Sueli, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luisa Lanna.
Na cena de abertura, que tem quase sete minutos de duração sem cortes, a câmera permanece estática, enquadrando um casebre coberto de folhagem seca, com uma parede feita de pranchas de compensado, algumas vermelhas. A voz pausada de Sueli anuncia, em off, o que vai ocorrer em seguida: “Meu pai, agora eu vou mostrar pra você o meu marido e a minha família pra você conhecer. Primeiro, o meu marido…” – um por um, quem é mencionado entra em quadro e se posta, lado a lado, de frente para a câmera, ocupando o espaço de uma lateral à outra. A própria Sueli é a última a se apresentar após ter dito: “E eu, meu pai. Você já viu a minha família, agora falta eu para completar.”
Em seguida, o marido toca maracá e canta, acompanhado pelos demais, repetindo os versos: “Gavião verde, no meio das folhas verdes, está/ No meio das folhas está/ No meio das folhas/ No meio das folhas está/ No meio das folhas…” Findo o canto, todos saem de quadro e o título do documentário é superposto à imagem do casebre com letras vermelhas, em maxakali, e letras brancas, em português.
A transição dessa cena para o segundo plano do documentário é feita por meio do áudio. Ouve-se, ainda no final da imagem do casebre, dois toques de celular que continuam até silenciarem na imagem seguinte – Sueli de perfil, sentada, segurando o aparelho à sua frente. Depois de um momento de silêncio, ela diz: “Não atendeu.” A tentativa frustrada de falar com seu pai é repetida até, finalmente, ambos conseguirem, primeiro, se falar e, depois, se encontrar após a longa viagem de ônibus feita por Sueli.
O plano de abertura indica o estilo predominante em Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá – planos de conjunto fixos e frontais, havendo algumas cenas, no entanto, gravadas com enquadramentos diferentes ou em movimento e até com a câmera na mão. O fato de a forma do documentário ser definida com precisão logo de saída deixa claro, porém, que ao caráter utilitário da cena inicial se agrega um projeto estético, o que contribui para tornar Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá ainda mais valioso.
Além de restabelecer o elo com seu pai, Sueli procura resgatar a memória do que causou a separação deles por tanto tempo. As lembranças das anciãs entrevistadas são fragmentárias, mas aos poucos vai se formando um quadro da vida de Luiz Kaiowá antes de ele mesmo aparecer na tela. “Não quer gravar, tá com preguiça. Tá com mania de velho”, comenta uma moça, enquanto prepara arroz com charque. Outra toma chimarrão e diz: “Se a gente conversar bem, quando o pai vir a filha ele vai se emocionar. Com certeza ele vai fazer a filmagem. Vamos conversar bem com ele. Porque as filhas querem ver o pai…”
O próprio Luiz só é apresentado quando já transcorreram dois terços do documentário, saindo agachado pela abertura na parte debaixo de uma porta. De óculos e máscara respiratória, ora com, ora sem boné, tem nas mãos uma cruz e quatro maracás. Ele canta, antes de se afastar caminhando: “Vem com o meu brilho/ Meu brilho faz o terreiro brilhar/ Vem, vem…/ Vem com o meu brilho/ Vem com o meu brilho/ Segue o meu canto/ Vem como brilho do sol/ Vem com o meu brilho/ Vem com o meu brilho…”
Ao se encontrarem pela primeira vez, enfim, Sueli e Luiz parecem não saber bem o que fazer. Acabam se abraçando, antes de os netos de Sueli serem apresentados ao bisavô e ele receber de presente uma rede de pescar.
Sueli conta para o pai, em voz off, que “quando faz perguntas, alguns Maxakali que já foi policial lá, aí eles falam mas… tem coisa que… não conta tudo pra mim. Por que que isso acontece? Algum medo, ou algum…”. Luiz começa a responder em português, mas se propõe a falar no idioma deles porque, se deixarem ele “falar em português, alguma coisa” ele vai “deixar passar”. Começa dizendo: “Eu conheci o tempo do capitão Pinheiro. Eles maltratavam os Tikmũ’ũn [Maxakali] para valer! Eu não aguentava, não! […] Mas eu trabalhava no trator.” E prossegue rememorando, ao longo dos dezesseis minutos finais do documentário. No encerramento, em voz off com tela preta, diz: “Então, onde quer que eu fosse, eu ia a pé. A pé… Eu sou sabido de andar a pé… Assim eu vivia mundo afora. Se a gente acredita, a gente vive quinhentos anos. Por aqui a gente passa, o fim do nosso ser. Isso vai acontecer pra gente, então é isso que vou virar pra vocês… Vou virar a minha fala.”
Yõg Ãtak: Meu Pai, Kaiowá terá pré-estreia no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP/Iphan), no Rio de Janeiro, no dia 3 de julho, com a inauguração da exposição Hãmxop tut xop – as mães das nossas coisas: artesanato em fibra de embaúba. O lançamento comercial está marcado para 10 de julho em cidades e cinemas ainda a serem confirmados. Temo que possa não ter a acolhida que merece, pois a configuração do mercado exibidor brasileiro privilegia cada vez mais filmes voltados para entreter o espectador com banalidades.